Em 1988 as principais manchetes foram estas:

Ayrton Senna sai da História para entrar no Mito

O começo da queda de Pinochet

Crime na floresta ecoa no mundo

Jumbo explode sobre a Escócia

Todo um país debaixo d’água

Um mundo unido por rolos de papel

A maldição que veio num livro

Derrotado pelo anabolizante

Um executivo movido a explosão

Os desenhos animados vivem

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1988

Ayrton Senna sai da História para entrar no Mito

Nunca houve uma decisão como aquela na Fórmula-1. A vitória de Ayrton Senna no Grande Prêmio do Japão, em 1988, que Ihe valeu o primeiro e mais belo de seus três títulos mundiais na categoria máxima do automobilismo, foi uma dessas horas mágicas que só o esporte sabe criar, juntando platéias do mundo inteiro— esquimós, pentecostais, naturistas, neonazistas etc.—num único frisson Meninos, eu vi: no remoto autódromo de Suzuka, a 400 quilômetros de Tóquio, os 120 mil japoneses que lotavam as arquibancadas, torcedores de Senna, uniam-se a cínicos jornalistas com décadas de experiência na Fórmula-1 no mesmo espanto. Após o acontecido, costuma-se apelar para o lugar-comum de que a história foi escrita diante dos nossos olhos. Não deixa de ser verdade. No entanto, o arrepio que percorre o mundo globalizado nessas horas paga tributo ainda maior a urna dimensão que e o oposto da história: a do Mito.

O Mito abole a história, só se interessa pelo eterno. Assim—repetindo o que dizia sobre o Fla x Flu o maior mitólogo do esporte brasileiro, Nelson Rodrigues—pode-se sustentar que Ayrton Senna já era campeão mundial 4 minutos antes do Nada. Numa perspectiva histórica, o circulo dos que acreditavam nisso não parava de crescer desde 1973, quando aquele paulistano de classe média alta, nascido em 21 de março de 1960, começara a se tornar uma lenda infantil nas pistas de kart. Mais tarde, na Europa, dominou inteiramente tudo o que disputou: Fórmula Ford 1600 e 2000 e Fórmula 3. Desde pequeno, tinha um estilo personalíssimo: entrava nas curvas dando bombadas nervosas no acelerador e gastava combustível e pneus como poucos, mas combinava a agressividade estonteante com uma técnica quase perfeita—quer dizer, errava muito pouco. Era como se pudesse existir um Gilles Villeneuve—outro mito, morto num acidente em 1982 sem jamais ter sido campeão—purgado dos erros villeneuvianos.

Quase imbatível nos treinos de classificação, incomparável sob chuva, já no início dos anos 80 não havia, nos bastidores do automobilismo mundial, quem não conhecesse Ayrton Senna. Eram famosas suas histórias como a da corrida que vencera no circuito de Snetterton, válida pelo campeonato inglês de Fórmula Ford 2000, em 1982, a bordo de um carro que, desde a largada, não tinha uma gota de óleo de freio. Impossível? Não para ele Senna era o campeão de F-1 mais anunciado da história. E agora chegava o seu momento.

A temporada de 1988 foi atípica. Na categoria desde 1984, quando estreara na pequena equipe Toleman (futura Benetton). Senna tinha finalmente, após três anos atribulados na Lotus, um carro de primeira linha, o lendário McLaren MP4/4, projetado sob o comando do não menos lendário sul-africano Gordon Murray. O problema era que, a seu lado na equipe inglesa, estava o francês Alain Prost. Aos 33 anos, bi-campeão, Prost, o "Professor", era considerado por todos os críticos uma espécie de Nilton Santos do automobilismo, uma enciclopédia: frio, técnico, quase infalível— ainda que raramente empolgante. Senna, 28 anos, era Senna. Os outros, inclusive o brasileiro Nelson Piquet, tri-campeão no ano anterior, estavam condenados a ser coadjuvantes pálidos no fim do ano a McLaren atingiria a marca inédita de 15 vitórias em 16 corridas.

Esse domínio tão absoluto era chato? Deveria ser, mas, nas circunstâncias, funcionou como um close de cinema, o foco fechado na ação principal. Embora ainda não se pudesse saber disso, começava ali, e continuaria pelas temporadas seguintes, o último duelo de gênios da Fórmula-1 no século XX—e talvez mesmo de todos os tempos, como apostam alguns. Prost largou na frente, beneficiado por uma derrapada infantil do brasileiro, que, líder folgado em Mônaco, cometeu um erro não-forçado e jogou fora a vitória certa. Em meados da temporada, porém, Senna reagiu e ultrapassou o francês. "O cara é maluco, só pensa no trabalho", o bi-campeão desabafou com Piquet, acusando o golpe. "Não sei mais o que fazer para ganhar dele."

Senna, Workaholic assumido, também andava nervoso. Começara a temporada chorando escondido, quando Piquet, em entrevista as vésperas do Grande Prêmio do Brasil, escancarou os rumores que acompanhavam a ascensão do tímido, reservadíssimo rival, questionando sua virilidade: "Ele precisa explicar por que não gosta de mulher". O tri-campeão acabaria por se retratar na Justiça, mas o estrago estava feito. Senna chorou novamente ao errar em Mônaco, consolando-se apenas com a crença de que, após a batida, viu a imagem de Deus atrás do guard-rail. E chorou também no GP da Espanha, o antepenúltimo da temporada, quando se convenceu de que a equipe boicotara seu motor para evitar urna prematura—e desastrosa para os lucros— decisão do título. "Foi isso mesmo, mas eu não posso falar nada", segredou-me Senna quando o procurei para a entrevista habitual após a estranha prova, vencida com facilidade por Prost. Ele nem procurava disfarçar os olhos úmidos na aridez de Jerez de la Frontera.

Foi assim, nervos à flor da pele, que a decisão chegou ao Japão. O brasileiro seria o campeão se vencesse. Prost conseguiria no máximo, em caso de vitória, adiar a decisão para a última corrida, na Austrália. Previa-se uma grande prova, naturalmente. Mas quem poderia imaginar que o que se passaria em Suzuka ao longo de uma hora e 33 minutos faria o episódio da vitória sem freios de Snetterton parecer uma brincadeira de criança?

Mais uma vez à frente do grid, Senna se deixou levar—coisa rara—pelo nervosismo. Soltou a embreagem antes da hora e viu seu carro morrer duas vezes na largada. Conseguiu fazê-lo pegar no tranco, mas, enquanto rateava, os outros iam embora. Senna caiu para o 16º lugar, com Prost em primeiro. Parecia o fim. Como alcançar o rival, se tinham carros iguais e eram pilotos quase do mesmo nível? Após a desastrosa largada muitos torcedores no Brasil se lembraram subitamente de que o Japão fica do outro lado do mundo. Eram duas da manhã. Desligaram a TV e foram dormir.

Para nós, que estávamos em Suzuka, o desânimo não foi menor. Senna confessaria depois ter sentido a mesma coisa dentro do cockpit. Só na segunda volta quando já era o sexto colocado, voltou a acreditar que, quem sabe, com um pouco de sorte... Na terceira volta, era o quinto; na quarta, o quarto; na 11ª, o terceiro. A essa altura, começava a cair uma chuva fininha que Senna, paulistão, identificou como "garoa". Era só o que faltava. Na 19ª volta, ele já estava na vice-liderança e partia para cima do companheiro de equipe. Na volta de número 28 passou pelo "Professor" como uma rajada de vento. O impossível acontecera. Ao fim da prova, Senna voltou a chorar e a falar em Deus, mas a essa altura não era o único a buscar uma explicação no domínio do sobrenatural. Racionalmente, era difícil explicar o que acontecera em Suzuka.

Se não fizesse mais nada—e fez muito, vencendo outros dois campeonatos, em 1990 e 1991, antes de morrer num acidente durante o Grande Prêmio de San Marino, em 1994—Ayrton Senna justificaria, apenas com seu desempenho em 1988, a empolgação de quem o considera o maior piloto de automóveis que já viveu. Não se trata de ufanismo brasileiro: era essa a opinião por exemplo do argentino Juan Manuel Fangio—oficialmente, com seus cinco títulos conquistados entre 1951 e 1957, o maior piloto de automóveis que já viveu. O inglês John Watson nunca foi campeão, mas, com 152 GPs disputados, contemporâneo de Jackie Stewart, Emerson Fittipaldi e Niki Lauda, deu um interessante depoimento sobre uma das primeiras vezes em que viu Senna correr, ao volante de um Lotus, em Brands Hatch. "Vi, com meus próprios olhos, algo que jamais tinha visto numa pista. Era como se ele tivesse quatro mãos e quatro pés. Freava, mudava a marcha, girava o volante, acelerava, tudo ao mesmo tempo. Chegou então um trecho em que era preciso tirar o pé. Senna não tirou. Entrou na curva com tanta arrogância que eu fiquei assustado. Foi um privilégio e uma experiência inesquecível ver aquilo: a capacidade do seu cérebro de separar todos os fundamentos da pilotagem, com um ritmo e uma coordenação de assustar."

Quando Senna morreu, Fangio tinha 82 anos e estava mal de saúde, acossado por uma insuficiência renal. O médico aconselhou a família a poupá-lo da notícia, que poderia apressar o seu fim. Foi assim que, ao expirar no ano seguinte, o velho penta-campeão tinha certeza de que Ayrton Senna estava vivo—uma mentira histórica Se bem que do ponto de vista do Mito, fosse a pura verdade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1988 

O começo da queda de Pinochet

Havia indícios de que o plebiscito convocado para 5 de outubro de 1988—que, esperava o Governo, daria ao general Augusto Pinochet mais oito anos de poder no Chile—talvez não tivesse o resultado previsto pela situação. Um mês antes, no dia 4 de setembro, na maior manifestação vista no país em 15 anos de ditadura um comício da oposição no centro de Santiago reuniu 350 mil pessoas, devidamente dispersadas a golpes de cassetete, jatos de água e bombas de gás lacrimogêneo. No dia 24, a chegada da viuva de Salvador Allende, Hortênsia, depois de 15 anos de exílio no México, levou 600 mil às ruas da capital. Desta vez a polícia se conteve.

O duro regime implantado pelos militares chilenos, em 1973, já havia abrandado um pouco. No início de setembro, o próprio Pinochet comunicou que todos os exilados políticos podiam retornar—como fizeram Hortênsia e outros antigos líderes oposicionistas—e que o resultado do plebiscito seria respeitado, fosse qual fosse. O medo de fraudes, porém, era tão grande que quatro ex-chefes de estado, 350 parlamentares e 500 observadores de organizações não-governamentais do mundo todo desembarcaram no Chile para vigiar o processo de votação e apuração.

Talvez nem fosse preciso. Apesar de êxitos em alguns setores da economia—queda da inflação, pequena redução do desemprego— a ditadura deixara cair o Produto Nacional Bruto e presenteara o país com a maior dívida per capitada América Latina. O número de pobres na periferia das cidades estava aumentando. E, acima de tudo, a maioria do povo já não aceitava que os militares se perpetuassem no poder à custa de uma ininterrupta seqüência de prisões, torturas, execuções e desaparecimentos, numa campanha que perseguia os adversários até no exterior. A oposição ganhou o plebiscito, que disse "Não" a Pinochet, com 57%dos votos.

O ditador chileno manteve a palavra e respeitou o resultado. Pela primeira vez desde o golpe de setembro de 1973, haveria eleições presidenciais e legislativas, marcadas para o final de 1989. Mas continuava valendo a Constituição de 1980, que concedia a Pinochet o direito de se tornar senador vitalício, de continuar chefiando o Exército e de integrar o Conselho de Segurança Nacional, órgão com mais poder que a presidência da Republica.

Partidários do regime ousaram pedir novo levante militar para anular o plebiscito. Entretanto, as autoridades não Ihes deram atenção e entraram em entendimento com políticos oposicionistas, inclusive para garantir as eleições que se realizariam em 14 de dezembro de 1989. Nelas, o oposicionista Patricio Aylwin derrotou o candidato oficial, Hernan Buchi.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1988

Crime na floresta ecoa no mundo

Chico Mendes, nascido Francisco Mendes Filho, de 44 anos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Acre, foi assassinado no dia 22 de dezembro de 1988, em Xapuri. O crime ocorrido num lugarejo encravado nos confins da Amazônia, numa região de fronteira agrícola, ganhou imediata repercussão internacional. Chico Mendes, havia anos, defendia que uma reserva extrativista fosse operada de forma nao-predatória. Tornou-se um incômodo para muitos fazendeiros, que, vindos de várias partes do Brasil para as redondezas de Xapuri, causaram terrível devastação na ecologia amazônica em nome do desenvolvimento econômico.

O assassinato de Chico Mendes foi uma típica morte anunciada. "Se um enviado dos céus garantisse que minha morte fortaleceria nossa luta, valeria a pena. Mas a experiência me ensina o contrário. Quero viver. Ato público e enterro numeroso não salvarão a Amazônia", havia declarado Chico Mendes depois que sua luta ecológica o tornara conhecido no Brasil. Em junho de 1988, era o único brasileiro numa reunião de 500 notáveis ecologistas de todo o mundo na ONU, em Washington. Antes disso, quando participara, em Miami, da conferência anual do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), seu nome já era conhecido entre os ecologistas do mundo.

Anos de luta no áspero interior da floresta, onde ajudara a organizar o trabalho e a resistência dos seringueiros, fizeram de Chico Mendes um defensor do meio-ambiente, fundador da primeira reserva extrativista do Brasil, 40 mil hectares de exploração conservacionista, em São Luiz do Remanso, situado a 80 quilômetros de Rio Branco, capital do Acre.

Chico Mendes foi assassinado com tiros de escopeta por Darci Alves a mando do pai, o fazendeiro Darly Alves. Darly foi preso em 1989, condenado a uma pena de 19 anos. Mas fugiu da cadeia em fevereiro de 1993, só sendo recapturado em agosto de 1996. Em 1999, Darly Alves ganhou o direito de passar os dias fora da cadeia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1988

Jumbo explode sobre a Escócia

Uma bomba instalada dentro de um rádio gravador provocou um dos maiores—e mais controvertidos—desastres aéreos do século. Com 258 pessoas a bordo, um Boeing 747 da empresa americana PanAm, vôo 103, caiu em Lockerbie, no sudoeste da Escócia, no dia 21 de dezembro de 1988. Onze moradores da cidade morreram atingidos pelo que restou da fuselagem. Na rota Frankfurt - Nova York, com escala em Londres, o avião explodiu uma hora depois de decolar do aeroporto londrino de Heathrow, as 18h25m.

As investigações conjuntas feitas por americanos (FBI), e ingleses (Esquadrão Anti-Terrorismo da Scotland Yard) rapidamente descobriram a causa do desastre: uma bomba de explosivo plástico Semtex montada dentro de um equipamento de som portátil e não detectada pelo aparelho de raio X do aeroporto. Descobriu-se mais tarde que a polícia alemã tinha encontrado, dois dias antes do desastre, um dispositivo similar num depósito em Frankfurt: um rádio gravador com 311 gramas de explosivo plástico e um detonador barométrico, capaz de acionar a bomba quando o avião alcançasse determinada altitude. O método estava definido mas o caso continuava longe de estar esclarecido.

Duas diferentes facções radicais da OLP e um grupo terrorista pró Irã, os Guardiães da Revolução Islâmica, assumiram a autoria do atentado, mas as três possibilidades foram descartadas ao longo das investigações. Só em 1990 a Justiça americana tomou as primeiras providências com relação ao caso, indiciando dois cidadãos líbios. Como o Governo líbio se recusou a extraditar os suspeitos, foi iniciada uma batalha política entre os dois países. O presidente líbio Muhammar Khadafi finalmente concordou, em 1999, em entregar os suspeitos para acabar com as sanções impostas pela ONU desde 1992. Abdel Basset al-Megrahi e Al-Amin Khalifa Fahima, foram levados ao tribunal na Holanda, em dezembro de 1999 e devem ser julgados em 2000.

O acidente em Lockerbie foi o primeiro de uma onda que desencadeou uma paranóia nos aeroportos internacionais. Nos três anos seguintes, foram registrados quatro acidentes aéreos causados por atentados. Para controlar a situação, o Governo americano anunciou a reformulação dos programas de segurança nos aeroportos e ação mais rigorosa na vistoria das bagagens de passageiros. O desastre afetou a credibilidade da PanAm, que enfrentou não só processos, num montante de US$ 500 milhões, como também a acusação de que teria recebido uma ameaça anônima a um de seus vôos saídos de Frankfurt—e não tomado providências a respeito. Somados a dívidas acumuladas através dos tempos, os prejuízos judiciais e a perda de credibilidade aceleraram a falência da companhia, em 1991.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1988

Todo um país debaixo d’água

Duas semanas de violentas chuvas foram responsáveis por mais de mil mortes e cerca de 25 milhões de pessoas desabrigadas em Bangladesh, em setembro de 1988. Com o trasbordamento dos rios que cortam o país, 50 mil quilômetros quadrados do território do país ficaram inundados e mais de mil pontes e 2,2 mil quilômetros de estradas foram destruídos, isolando diversas localidades. Mesmo as linhas ferroviárias do país, construídas muito acima do solo para evitar inundações, ficaram submersas. O trágico cenário de dois terços do país submersos foi complementado com a proliferação dos distúrbios respiratórios e doenças intestinais, com a falta de comida e o surgimento de cobras venenosas por toda parte. Pelo menos 15 mil cabeças de gado morreram e 60 mil casas ficaram destruídas, nas piores inundações já registradas no país, então com 110 milhões de habitantes, boa parte vivendo na miséria absoluta.

A fome se alastrou no mesmo ritmo que as chuvas, já que, além da perda do gado, mais de dois milhões de toneladas de trigo foram destruídas pelas inundações. Um quarto das plantações do país foi levado pelas águas. A ajuda estrangeira esteve dificultada pelo fechamento do Aeroporto Internacional de Daca, a capital, também inundada pelas chuvas. No início de outubro, as equipes de resgate só tinham conseguido alcançar uma quarta parte do território tomado pelas águas. Mahabur Rahmante, ministro da Informação de Bangladesh, declarou: "Nunca um país dessa região sofreu tanta destruição com uma catástrofe natural." E olhe que ele estava falando de um país e de uma região constantemente assolados por catástrofes, naturais ou provocadas.

Aliás, mesmo desta vez, a natureza não levou a culpa sozinha. Ambientalistas explicaram que as causas das repetidas cheias na região já eram conhecidas havia muito tempo, pelo menos 40 anos. Não por coincidência, foi justamente durante este período que a destruição do meio ambiente no subcontinente indiano mais se intensificou.

A superpopulação, outro problema comum na região, levou a destruição das matas, que precisaram ser convertidas em áreas de lavoura. Não encontrando resistência no caminho até os vales, as fortes chuvas de monções formaram enxurradas, provocando destruição e morte. As águas levaram vários meses para baixar completamente e Bangladesh. um país que já nascera dividido e repleto de problemas sociais, levou muito tempo para voltar a ter uma vida minimamente normal.

Para piorar a situação, três anos depois das enchentes, Bangladesh foi vítima de mais uma devastadora catástrofe climática. A passagem de um ciclone pelo país em maio de 1991 deixou cerca de 140 mil mortos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1988

Um mundo unido por rolos de papel

Antes da onda globalizante, o mundo experimentou uma espécie de pré-lnternet. O fax (abreviação de fac-símile), aparelho capaz de transmitir textos e imagens através de uma linha telefônica, passou a ser, a partir de 1988, a maior vedete do mundo dos negócios. A invenção permitiu a troca rápida de documentos entre pessoas de qualquer ponto do planeta. Além disso, o uso da geringonça criou até novos padrões de comportamento.

A tecnologia tomou conta dos escritórios, facilitando a vida dos pequenos empresários. Planilhas e documentos poderiam ser transmitidos de um lugar para o outro em menos de um minuto. Em pouco tempo, o fax serviu de ferramenta para orientar os negócios no mercado internacional, através de um serviço de consultoria sobre taxas de importação e exportação De 1987 até 1989, o numero de máquinas instaladas no país aumentou de seis mil para 69 mil, um total quase insignificante comparado ao 1,9 milhão de máquinas então em funcionamento no Japão.

No Brasil a mania apareceu, como sempre, tardiamente. A essa altura, o fax já tinha virado artigo obrigatório na Europa, no Japão e nos Estados Unidos. Em 1989 três empresas nacionais produziam o equipamento: a Itautec que chegou primeiro, em 1984, com tecnologia da Canon japonesa; a Milmar Indústria e Comércio, que passou a produzir o aparelho em larga escala no ano seguinte; e a Gentek. Apesar disso, a popularização do fax no Brasil se apoiou nas indústrias estrangeiras, nos importadores e nos contrabandistas. Juntos, eles eram responsáveis por 70% do mercado.

As industrias brasileiras só vendiam o fax comercial, bem mais caro do que o modelo pessoal, a venda no exterior. Enquanto um fax Toshiba era comprado em Manaus por US$ 800, modelos nacionais saiam por até US$ 5 mil. Nem o alto custo impediu que empresas de pequeno porte aderissem a moda. Logo o mercado se encheu de prestadoras de serviço, que recebiam fax para empresas cadastradas que não operavam com a tecnologia.

Além dos negócios, a chegada do fax afetou a vida cotidiana. Os restaurantes enviavam cópias dos cardápios para o cliente escolher sua refeição no ato da reserva. O fax também poderia substituir o correio, servindo como meio de correspondência muito mais eficiente. Os mais moderninhos utilizavam a tecnologia até para namorar. Políticos e anunciantes enviavam sua propaganda, consumindo muito papel térmico, sem o consentimento do proprietário do aparelho. Com o advento da comunicação via computador, os fabricantes foram forçados a se adaptar a nova realidade tecnológica: o aparelho passou a ser conectado aos micros, mais rápidos e eficientes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1988

A maldição que veio num livro

O romance "The satanic verses" ("Versículos satânicos", na tradução portuguesa), do escritor britânico de origem hindu islâmica Salman Rushdie, publicado na Inglaterra em 1988, comparava as três mulheres do profeta Maome a prostitutas e chamava o fundador do islamismo por um nome depreciativo, atraindo a imediata ira dos muçulmanos. Na Grã-Bretanha, imigrantes islâmicos queimaram exemplares do livro, que foi proibido em diversos países e motivou manifestações de protesto na Índia e no Paquistão. O pior viria do Irã fundamentalista do aiatolá Ruhollah Khomeini, que condenou Rushdie à morte em 1989 e prometeu o céu a quem sucumbisse no cumprimento da sentença. Se o assassino sobrevivesse, teria um prêmio que se acumulou até chegar a US$ 86 milhões, por decisões de outros lideres muçulmanos. A ameaça estendia-.se a quem publicasse o livro.

Rushclie e a família tiveram que se esconder desde então, protegidos pela Scotland Yard. Bombas incendiárias e ameaças fizeram as livrarias retirarem o livro das prateleiras. Editoras cancelaram sua publicação em todo o mundo. Mulheres iranianas iam às ruas pedindo a execução do escritor anunciava-se a chegada de comandos fundamentalistas à Europa para executar a fatwah (condenação sagrada à morte) e, apesar dos protestos de diversos países e grupos de intelectuais, a sentença do aiatolá não foi retirada, sobrevivendo ao próprio líder religioso iraniano.

Salman Rushdie viveu anos em esconderijos, perdeu a mulher e os filhos, forçados a se afastarem dele, e não conseguia editores para seus livros. Chegou a pedir desculpas publicamente ao mundo islâmico e, mais tarde, a aderir a religião do Alcorão numa tentativa de se livrar da condenação. O medo e o isolamento transformaram a sua vida num inferno. Khomeini e seus sucessores foram pressionados até por correntes muçulmanas mais liberais que ressaltavam a oposição de sua fé ao assassinato, mas a sentença permaneceu.

Rushdie, com o passar dos anos, publicou outros livros e começou a se aventurar em aparições públicas, sob proteção policial. Em 1993, Bono Vox o levou ao palco durante a turnê "Zoo-TV", do U2. Em 1998, foi convidado especial na abertura da Feira do Livro de Frankfurt. Em 1999, esteve na fechada e badalada festa de lançamento da revista americana 'Talk", que aconteceu dentro da Estátua da Liberdade. A sentença de Khomeini se manteve embora tenha perdido o caráter político quando, em 1998, o governo do Irã declarou que estava se dissociando da fatwah. Com a medida política, visando reaproximar o Irã da Europa Rushdie disse crer que sua vida já não corria tanto perigo. Desde então, "The satanic verses" foi publicado em vários países, inclusive o Brasil l (Como "Versos satânicos", em1998).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1988

Derrotado pelo anabolizante

O canadense Ben Johnson poderia ter entrado para a História como o corredor que, nas Olimpíadas de Seúl, em 1988. quebrou o recorde mundial dos 100 metros rasos, com o impressionante tempo de 9s79. O desempenho deixou para trás seu maior adversário, o americano Carl Lewis, um dos favoritos da competição. Só que ele teve pouco tempo para saborear a vitória O exame anti-doping realizado por cientistas do Instituto Coreano de Tecnologia revelou a presença de estanozolol, substância proibida pelas autoridades esportivas, na urina do corredor.

As regras do Comitê Olímpico Internacional (COI) não deixavam dúvidas: Ben Johnson teria que devolver a medalha de ouro (que passou para o americano Carl Lewis), ficaria automaticamente desligado da competição e voltaria ao Canadá. De um dia para o outro, o homem mais veloz do mundo foi reduzido a um impostor, estigma que perseguiu o atleta até o final da sua careira, em 1993, quando novamente foi reprovado num anti-doping.

O incidente com Ben Johnson mostrou que os meios de detecção e prevenção anti-doping eram muito limitados. Apesar de usar freqüentemente anabolizantes desde 1981, de acordo com o treinador Charles Francis e o medico George Astaphan, Johnson nunca tinha sido descoberto. A notícia detonou uma caça aos atletas que faziam uso de anabolizantes para aumentar seu rendimento nas competições esportivas. Seu poder de destruição quase podia ser comparado ao dos boicotes que tiraram o brilho das olimpíadas de Moscou (1980) e Los Angeles (1984). Além de Ben Johnson, foram flagrados no exame anti-doping dois atletas de pentatlo moderno, da Espanha e da Austrália, um judoca inglês e quatro halterofilistas, de Bulgária, Espanha e Hungria.

Apesar disso, Seul proporcionou bons momentos, principalmente no atletismo. A americana Florence Criffith-Joyner alcançou a marca 21s34 nos 200 metros, novo recorde mundial. A estrela de Seul, que chamava a atenção pela vaidade que mostrava nos cabelos arrumados, maquiagem e uniformes vistosos, também foi suspeita de uso de anabolizantes mas liberada no exame anti-doping. Ela morreria do coração em 1998, aos 38 anos, comprovando tardiamente os boatos. A URSS foi a líder no quadro de medalhas, com 55 de ouro, 31 de prata e 46 de bronze. O Brasil revelou o talento do judoca Aurélio Miguel (medalha de ouro na categoria meio pesados) e do artilheiro da seleção de futebol que ficou com a prata, Romário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1988

Um executivo movido a explosão

Um dos maiores mitos do automobilismo, o italiano Enzo Ferrari morreu aos 90 anos em sua casa, na cidade de Módena, no dia 14 de agosto de 1988. O ousado e temperamental proprietário e comandante da mais famosa escuderia da Fórmula-1 teve seu pedido atendido: sua morte só foi divulgada após o enterro, ao qual compareceu apenas a família. Alto, cabelos grisalhos e sempre de óculos escuros Enzo deixaria seus carros vermelhos sob os cuidados da Fiat, que iria controlar 90% da fabrica, conseqüência de um acordo feito em 1969, quando Ferrari, em dificuldades financeiras, aceitou vender 50% de seu negócio para a montadora italiana, que poderia controlar mais 40% quando ele morresse. Os outros 10% continuariam com o filho dele, Piero Lardi.

Era a garantia que o Vecchio Signore (velho senhor) queria de que seus carros continuassem competitivos nas pistas. De 1952 a 1979, a Ferrari conquistou nove títulos mundiais de Fórmula-1, venceu nove vezes as 24 horas de Le Mans e teve entre seus pilotos Juan Manuel Fangio, Niki Lauda, Gilles Villeneuve e Alberto Ascari, estes dois mortos nas pistas. Chico Landi (anos 40/50) foi o único brasileiro a pilotar um carro da escuderia durante a vida do comendador. Os automóveis de luxo da marca, com produção limitada, são símbolos de status e elegância em todo o mundo.

Nascido na cidade de Módena, em 18 de fevereiro de 1898, Ferrari queria ser cantor de ópera, mas começou a se interessar por automobilismo já aos 10 anos. Depois de cuidar das ferraduras dos cavalos das tropas, na Primeira Guerra Mundial, foi piloto da Alfa Romeo a partir de 1920 e montou sua própria escuderia, em 1929, já com o símbolo do cavalinho preto empinado sobre um fundo amarelo. Ainda sem esta cor—que seria acrescentada por Ferrari—ele foi presente do conde e da condessa Baracca, cujo filho aviador morrera abatido por alemães na guerra. Como tinha vindo da cavalaria. ele pintara o símbolo no avião após as primeiras vitórias.

A Escuderia Ferrari, que começou como uma associação de pilotos, transformou-se na divisão de carros de corrida da Alfa Romeo em 1933. Em 1940, Enzo abandonou a Alfa Romeo e criou sua própria empresa automobilística, a Auto Avio Construzioni Ferrari, que ganhou uma fábrica autônoma. na cidade de Maranello, em 1943, e acabou bombardeada no ano seguinte. Reconstruída em 1946, a fábrica de Ferrari lançou o primeiro carro de corrida totalmente desenhado e construído por ela em 1947. Em 1956, o maior choque da vida do comendador, título concedido a ele por Mussolini: o filho Dino morreu de distrofia muscular aos 24 anos. Depois disso, Enzo jamais voltou a entrar numa pista de corrida e fez dos óculos escuros sua companhia permanente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1988

Os desenhos animados vivem

O sonho de Walt Disney de combinar atores e desenhos ganhou versão definitiva em 22 de junho de 1988, quando um fascinado público americano conferiu um primor de técnica cinematográfica que fazia seres humanos contracenarem com desenhos animados com um realismo nunca visto. Dirigido por Robert Zemeckis de "De volta para o futuro", "Uma cilada para Roger Rabbit" foi fruto da cooperação entre o que de melhor havia no cinema em termos de animação: a Amblin Entertainment (empresa de Steven Spielberg), a Touchstone F'ictures (subsidiária da Disney), a Industrial Light & Magic (de George Lucas) e o desenhista canadense Richard Williams. Com um orçamento de US$ 45 milhões e uma equipe de 773 pessoas, que trabalharam sob pressão por três anos, o filme-animação faturou US$ 100 milhões nas cinco primeiras semanas de exibição nos EUA e ganhou quatro Oscars.

Tão brilhante quanto a técnica era a premissa do filme: os desenhos animados existem mesmo, são tridimensionais, trabalham no cinema assim como as pessoas de carne e osso e de noite voltam para casa em ToonTown cidade que habitam nas cercanias de Hollywood. O principal personagem era o coelho instável e neurótico Roger angustiado com os ciúmes que sente da mulher a sensual Jessica uma mistura de Rita Hayworth, Verônica Lake e Lauren Bacall com a voz de Kathleen Turner.

Para vigiá-lo, é contratado o irritadiço detetive particular Eddie Valiant, interpretado pelo ator inglês Bob Hoskins que passou a maior parte das filmagens sozinho em cena, simulando diálogos com os desenhos.

O roteiro escrito por Jeffrey Price e Peter S. Seaman, a partir de romance de Gary K. Wolf, e ambientado na Los Angeles dos anos 40, era um primor. "Como ET, Roger Rabbit é algo que só acontece uma vez na vida de uma geração", afirmou Steven Spielberg. A participação de personagens de outros estúdios, como Pernalonga, Mickey, Donald, Dumbo, Patolino, Picapau, Gaguinho, Droopy e Betty Boop (numa genial cena em preto-e-branco) da a impressão de uma grande festa de confraternização entre estes animados personagens, festa na qual os humanos são meros coadjuvantes.

Fonte: O Globo - Texto integral