Em 1989 as principais manchetes foram estas:

Nos escombros do Muro, a festa se torna ressaca

No fim, um inútil ato de coragem

Um alerta contra a droga democrática

Som e fúria significando nada

EUA põem velho amigo no xadrez

Apartheid começa a desmoronar

Cinema engajado conquista a tela

Cientistas fazem confusão nuclear

Alasca, o paraíso coberto de óleo

Gênio se despede em grande estilo

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1989

Nos escombros do Muro, a festa se torna ressaca

Em determinado momento do conto "Der Mauerspringer" (no Brasil, "Os saltadores do muro", 1982), de Peter Sch neider, o protagonista se dá conta de uma singular mudança de paradigma: nos mapas de Berlim Ocidental, o Muro é assinalado por um tênue traço rosa que divide a cidade; nos mapas da parte oriental, o mundo termina numa faixa negra além da qual só existe o nada. "Moro numa cidade siamesa", diz ele, que passa os dias em busca da própria identidade no confronto com histórias do cotidiano em dois Estados jovens (nascidos depois da Segunda Guerra) mas ideologicamente opostos. Flores, lágrimas, risos e champanhe. Novembro de 1989. As imagens do Muro de Berlim apinhado de gente tomando porres, cantando, chorando de alegria e em cenas (raras na Alemanha) de beijos e abraços entre pessoas que nunca se viram fazem parte da galeria dos momentos gloriosos do século XX. Desespero, coragem extrema, perseguição e morte. Desde que a estranha construção de placas de concreto e arame farpado foi ergui da por unidades armadas da República Democrática Alemã, na noite de 13 de agosto de 1961, alemães orientais jamais desistiram de cruzá-la. Muitos chegaram ao outro lado— através de túneis subterrâneos pacientemente cavados, nadando pelos tubos de esgoto, em estranhos aparelhos voadores ou simplesmente pulando o Muro—para reencontrar a família dividida, amigos, a liberdade. Mais de 200 perderam a vida.

A fronteira entre as duas metades da Alemanha era considerada quase intransponível. O Muro, construído às pressas em torno de Ber lim Ocidental, quando o regime comunista da República Democrática Alemã já não conseguia conter a migração de seus cidadãos para o Oeste, tinha 165,7 quilômetros de concreto e de arame farpado. Ao longo desta cerca havia 300 torres de observação com guardas arma dos dia e noite, atentos para o lado externo e para a "faixa de morte" interna do muro, salpicada de minas e mecanismos que, ao menor toque, detonavam poderosos feixes de luz. No pé da parte interna do muro pregos de aço de 12 centímetros literalmente prendiam os corpos em queda. Por entre as cercas elétricas dos canais subterrâneos, só o que passava era o cocô das duas partes da cidade.

A condição de cidade dividida ao longo de décadas fez de Berlim um lugar particular, em que ódio e ressentimento cresciam na mesma proporção da indiferença e do desinteresse . Auseinanderleben é um verbo de difícil tradução: "viver cada um para um lado oposto". O que ocorreu entre alemães ocidentais e orientais, marcados durante quarenta anos por ideologias, possibilidades e sonhos opostos.

Foi História em ritmo acelerado o que aconteceu naquela noite fria de 9 para 10 de novembro, coroando um movimento de revolução pacífica na Alemanha Oriental—a qual o Ocidente assistiu incrédulo—e esboroando o regime da Alemanha comunista. A população saiu da sombra; o regime do líder Erich Honecker tombou empurrado pela pressão crescente da oposição, levando de arrastão o Muro. O movimento popular começara em agosto, com centenas de alemães orientais refugiados nas representações alemãs em Berlim Oriental, Budapeste e Praga. Cresceu, com mais de um milhão de cidadãos da RDA requisitando pedidos de emigração. Dezenas de milhares não esperaram a autorização, escapando através das fronteiras que foram sendo abertas nos países vizinhos. Ao escancarar sua fronteira com a Áustria e permitir a saída de 120 mil falsos turistas alemães orientais em 11 de setembro, a Hungria causou a primeira rachadura no Muro. Dia 30, na capital Tcheca, o ministro das Relações Exteriores, Hans-Dietrich Genscher, permitiu que quase seis mil refugiados deixassem Praga e Varsóvia rumo a Alemanha Ocidental em trens especiais.

"Nós somos o povo. Nós somos um povo". Tímido, no inicio, e cada vez mais forte, o refrão se repete toda segunda-feira em Leipzig, depois da missa na igreja de São Nicolau, ecoando pelas principais cidades do Leste. Manifestação de 70 mil pessoas em Leipzig em 9 de outubro. Honecker cai no dia 18. No dia 23, são 300 mil nas ruas de Leipzig, mais de um milhão em Berlim Oriental, outros tantos em Dresden, seguidores de Barbel Bohley e Jens Reich, do movimento civil de oposição Novo Fórum. Em 7 de outubro, 40" aniversário da RDA, o líder soviético Mikhail Gorbatchov, profere a célebre advertência: "Quem chega atrasado é punido pela História."

No caso, o regime alemão oriental, que ainda fechava os olhos diante da fuga em massa de seus cidadãos através dos países vizinhos. Mas a panela de pressão estourou. Egon Krenz, que sucedera a Honecker, telefonou para Gorbatchov. Este recomendou que a fronteira entre as Alemanhas devia ser aberta como válvula de escape, prevenindo uma rebelião que poderia por fim ao controle comunista. O Muro foi erguido por determinação de um líder soviético, Kruchov, e derrubado por ordem de outro. Sua queda espantosamente súbita marcou o fim da divisão do mundo em duas doutrinas, a comunista e a capitalista.

Na noite de 9 de novembro o porta-voz Gunther Schabowski, membro do Politburo, lê um comunicado vago dizendo que os alemães orientais podem solicitar viagens particulares. Assombrados, nem todos os guardas de fronteira conseguem interpretar o enigmático comunicado. Nem precisam, já não dá para conter. As massas forçam a travessia nos pontos de passagem, realizam o sonho de cruzar o Muro sem perigo de levar um tiro, e são recebidos com euforia, fogos de artifício e batucada, e, melhor entre os presentes, 100 marcos, o cobiçado dinheiro alemão ocidental.

Depois, os acontecimentos se atropelaram. O plano de dez itens prevendo "estruturas confederativas entre os dois estados alemães" do chanceler Helmut Kohl no final de novembro. A renúncia coletiva do Politburo e do comitê central alemão oriental. A abertura do símbolo maior da divisão, o Portão de Brandenburgo, às vésperas do Natal. As primeiras eleições livres, que consagram o partido democrata-cristão de Kohl. A união monetária que levou o marco alemão ocidental ao outro lado. A unificação política, em 3 de outubro de 1991. A retirada das tropas soviéticas.

Dez anos depois, sentindo o preço da unificação dolorosamente em seus bolsos os alemães ocidentais, desinteressados do destino de seus primos do Leste, seguem suas vidas. Do "outro lado", independentemente da idade e preciso começar dramaticamente do zero. No lugar das "paisagens florescentes" imaginadas por Helmut Kohl, existe desemprego, desilusão e uma disparidade salarial ainda grande, comparada com o Oeste. Os "restos" do Muro ainda estão nas cabeças. São grandes os desafios para evitar que se concretize o vaticínio do final de "Der Mauerspringer" : "Estes muros ainda estarão de pé quando não houver mais ninguém para passar por eles".

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1989

No fim, um inútil ato de coragem

Transmitida via satélite pela TV, a cena de poucos minutos impressionou o mundo inteiro: o jovem só e desarmado, paletó pendurado num dos braços, colocou-se a frente da coluna de tanques que avançava pela Avenida da Paz Eterna, parou-a erguendo as mãos, subiu no primeiro veículo e ficou batendo na blindagem e gritando "Fascistas, fascistas". Depois várias pessoas o retiraram dali. O gesto desesperado e heróico de Wang Weilin, um universitário de 19 anos, que tudo leva a crer ter sido fuzilado dias mais tarde, não impediu que os tanques e os soldados do Exército de Libertação do Povo entrassem, no fim da noite de 3 de junho de 1989, na Praça da Paz Celestial, centro de Pequim, para massacrar os milhares de estudantes e seus aliados ali acampados. Não se conhecem números oficiais, mas é possível que as mortes tenham chegado a sete mil.

Em 27 de abril, os estudantes começaram a se manifestar. Cerca de 50 mil marcharam rumo a praça, logo recebendo o apoio de um milhão de pessoas, entre intelectuais, funcionários públicos, operários, comerciários e até militares. As principais reivindicações: liberdade política e de imprensa (o líder Deng Xiaoping realizara a abertura econômica e a aproximação com o Ocidente, mas na política interna era um intransigente conservador); combate a corrupção e aos privilégios; um pedido de perdão dos lideres comunistas ao povo chinês; e a reabilitação do ex-secretário-geral do partido, Hu Yaobang, que morrera em 15 de abril, desgraçado por se recusar a reprimir uma revolta estudantil em 1987.

Uma greve de fome foi iniciada em 13 de maio, data em que também, numa perigosa provocação, os estudantes ergueram na Praça da Paz Celestial uma cópia da Estátua da Liberdade. Dali a dois dias, o líder chinês receberia no local o presidente da URSS Mikhail Gorbatchov, no que representava o primeiro contato oficial entre governantes das duas nações em 30 anos. Gorbatchov achou "interessantes" as reivindicações dos estudantes.

Aproveitando a presença do soviético, eles deixaram de lado os atos pacíficos e passaram a exigir democracia. O primeiro-ministro Li Peng enviou soldados, e os rebeldes se aglomeraram nas ruas para evitar que estes avançassem. No dia 20, foi decretada a lei marcial na cidade. Cem mil manifestantes pediram a destituição de Peng em 23 de maio. No começo de junho a TV chinesa mostrou um inquietante cerco de tropas ao redor da praça.

Depois do massacre de 3 e 4 de junho, a linha dura assumiu o controle da China, e a repressão continuou. Nos meses seguintes dezenas de presos políticos foram executados em várias cidades. No primeiro aniversário da chacina, a agência noticiosa oficial Nova China concluiu uma reportagem sobre o assunto dizendo que a repressão não foi mais que uma "expressão dos desejos do povo".

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1989

Um alerta contra a droga democrática

Em 5 de setembro de 1989, o presidente George Bush fez seu primeiro pronunciamento em TV ao povo americano anunciando a maior campanha anti-drogas já financiada pelo Governo. No discurso ele anunciava a verba recorde de US$ 7,86 bilhões para o combate ao tráfico e dizia: "As drogas estão minando nossa força como nação. Nossos maiores problemas hoje são a cocaína e, em especial, o crack". O Governo americano admitia oficialmente algo que as autoridades policiais do país vinham alardeando nos últimos anos: o consumo de crack estava se tornando um mal social incontrolável naquele final dos anos 80.

Feita com pasta de cocaína não refinada, a pedra de crack é fumada e o efeito da droga, sentido no cérebro de quatro a seis segundos depois de inalada a fumaça. Este derivado mais potente e barato da cocaína foi desenvolvido nas Bahamas em 1983 e começou a ganhar as ruas das grandes cidades americanas em 1985. O crack se espalhou nos bairros pobres dessas metrópoles causando um duplo efeito danoso: aumentou tanto o número de viciados quanto o de gangues de traficantes. em ambos os casos, segundo a polícia, na faixa dos adolescentes de baixa renda. Em 1986, o consumo da droga já era considerado uma epidemia pelas autoridades do país. Segundo a prefeitura de Nova York, em 1989 o número de viciados na cidade havia triplicado desde 1986. Ainda em 1989, os departamentos de saúde das prefeituras de oito cidades americanas registraram o nascimento de cerca de 9 mil filhos de mulheres viciadas na droga.

A verba liberada por Bush em 1989 era destinada basicamente a polícia, tribunais, hospitais, presídios e serviços de assistência social —além de incluir ajuda financeira para as policias de países exportadores de drogas como Colômbia, Bolívia e Peru. No final dos anos 80, as instituições americanas se descobriram impotentes para combater o consumo de uma droga barata, de fácil acesso, de alto poder de viciamento, extremamente danosa à saúde e causadora de comportamento paranóico e violento. Junto com a disseminação do vício, aumentou significativamente o número de crimes urbanos, como abandono e espancamento de crianças, mortes violentas entre adolescentes—o tráfico do crack se valia de gangues de jovens fortemente armados consumindo e vendendo a droga—brigas de casal com morte, prostituição de menores e pequenos assaltos com desfechos brutais.

Em 1989, a droga começou a ser encontrada na Europa Ocidental. Com o fim do comunismo e posterior aumento do crime organizado, ela entrou também nos países da antiga União Soviética. Na primeira metade dos anos 90, o consumo de crack se espalhou por São Paulo e em 1995 já se contabilizavam 150 mil viciados em droga na maior cidade do Brasil. A bilionária campanha lançada em 1989 pelo presidente Bush visava cortar pela metade o consumo de drogas nos Estados Unidos até o ano 2000 Um estudo da Organização Mundial de Saúde de 1995 mostrou que o objetivo ainda estava muito longe de ser alcançado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1989

Som e fúria significando nada

Quando Fernando Collor de Mello venceu a campanha presidencial de 1989, o cidadão brasileiro deixava um jejum de eleições presidenciais que vinha desde o movimento militar de 1964. Por um período de 21 anos, cinco generais sucederam-se na presidência da República. O Último, João Figueiredo, ao fim de um mandato de seis anos, foi substituído, em 1985, por um civil, José Sarney, vice-presidente de Tancredo Neves, eleito pelo Congresso mas que haveria de morrer, doente, em abril de 1985, antes de tomar posse. O primeiro presidente a ser eleito pelo voto direto. segundo rezava a Constituição promulgada em 1988, teria que vencer dois turnos sucessivos de eleição, o segundo turno sendo a disputa exclusiva entre os dois primeiros colocados no primeiro turno, marcado para outubro de 89. O segundo turno realizou-se em novembro.

A vitória do até então obscuro político alagoano Fernando Collor de Mello foi surpreendente. Os últimos meses do Governo Sarney, que se encerraria em 15 de março de 1990 deixaram o país submerso numa inflação jamais vista e o presidente incapaz de sugerir a Nação um sucessor. Assim, durante a campanha de 1989, a urgência em modernizar o país tornou-se palavra de ordem até dos políticos mais conservadores. A disputa polarizava-se, aparentemente, entre dois nomes da esquerda: o veterano Leonel Brizola, do PDT, eleito governador do Estado do Rio de Janeiro em 1982, e Luiz Inácio Lula da Silva, líder operário que encabeçou a criação do renovador Partido dos Trabalhadores. No primeiro trimestre de 1989, ninguém esperava a vertiginosa irrupção do nome de Collor, que se apresentou como a única opção para representar o desprezo popular pelos políticos profissionais.

Collor era filho de família de oligarcas alagoanos, embora tivesse crescido na Zona Sul do Rio de Janeiro, e governador do Estado de Alagoas, no qual fez uma ruidosa campanha de moralização do serviço público apresentando-se como o "caçador de marajás". Baseando sua campanha em frases de efeito, boa estampa e facilidade de expressão na TV, Collor conquistou o eleitorado com sua figura cheia de som e fúria, significando nada. Logo era apoiado por boa parte dos setores conservadores do país, temerosos de uma vitória da esquerda fazendo chapa com Itamar Franco. Assim que foi empossado, o presidente confiscou os depósitos de poupança da população, iniciando o mandato polêmico que terminou num processo de impeachment em 1992.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1989

EUA põem velho amigo no xadrez

Em 20 de dezembro de 1989, seis anos depois da invasão de Granada, os EUA voltaram a intervir militar mente num país das Américas. Alvo: Panamá. Objetivo: destituir o general Manuel Noriega, no poder havia um ano. Argumento: acabar com um governo corrupto ligado ao narcotráfico Granada foi tomada em três dias. No entanto, no Panamá, para onde o presidente Geor ge Bush enviou cerca de 25 mil soldados, apoiados por aviões e helicópteros, os EUA não encontraram tanta facilidade. Foram duas semanas de combates. Os homens leais a Noriega resistiram mais que o esperado e o ditador escapou nas primeiras horas de luta, refugiando-se na nunciatura apostólica. Em 4 de janeiro de 1990, porém, Noriega entregou-se, na condição de prisioneiro de guerra. Foi julgado nos EUA, em 1992. E condenado a 40 anos de prisão, por narcotráfico e lavagem de dinheiro.

Houve forte reação diplomática e vários países condenaram a invasão, com maior ou menor veemência. Apenas a Inglaterra, por intermédio de Margaret Thatcher, declarou "total apoio" a intervenção, que o presidente do Brasil, José Sarney, qualificou de "retrocesso nas relações internacionais do continente". O próprio nome da operação revelava a preocupação de legitimar o ataque: Causa Justa. Mas a causa não parecia assim tão justa—ou ao menos evidente. Embora sofresse sanções econômicas desde o início de seu governo, Noriega estudara nos EUA e trabalhara para a CIA (Agencia Central de Informações), a DEA (órgão de repressão ao tráfico de drogas) e a própria Casa Branca. O presidente Reagan o chamou de corrupto na mesma época em que a DEA o elogiava. Acusaram-no de ligações com Cuba. enquanto o coronel Oliver North, assessor do Conselho de Segurança Nacional, usava o Panamá para treinar os contras da Nicarágua. Pelo menos duas vezes, em 1976 e 1983, ele se encontrou com Bush. Na primeira, o presidente era diretor da CIA e Noriega chefiava o serviço de espionagem panamenho. Quando os desmandos de Noriega ganharam manchetes internacionais, porém, sua utilidade como aliado americano acabou. A crise entre os dois países começou em 10 de maio de 1989, quando Noriega anulou a votação que havia eleito Guillermo Endara novo presidente panamenho. Em 17 de dezembro, o estopim da invasão: um militar americano foi morto por soldados panamenhos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1989

Apartheid começa a desmoronar

Quando o conservador presidente Pieter Botha sofreu um derrame cerebral em janeiro de 1989, a segregação racial já estava perdendo força na África do Sul havia ao menos dois anos. Menos por sua vontade e mais pela crescente pressão dos 23 milhões de negros da África do Sul (70% dos habitantes), pelos esforços diplomáticos e pelas sanções econômicas e esportivas. Em 1987, havia sido abolida a lei do passe, pela qual o morador de áreas reservadas a negros só poderia circular ou permanecer em áreas de brancos mostrando uma autorização da polícia. Era o primeiro passo.

Depois do derrame, Botha licenciou-se durante alguns meses, favorecendo o surgimento de novas medidas favoráveis a maioria negra. Logo em março entrou em vigor a lei que permitia a convivência de pessoas de raças diferentes em determinadas áreas. No mesmo mês, uma comissão de juristas criada pelo Parlamento sul-africano recomendou a extensão do direito de voto aos negros, e Frederik de Klerk, chefe do Partido Nacional (PN), os mesmo de Botha, defendeu reformas no apar theid e afirmou que "a hora para a grande indaba chegou" (indaba significa reunião em zu lu). Os negros, porém, impuseram uma condição para negociar: a libertação de Nelson Mandela, líder do ilegal mas atuante Congresso Nacional Africano (CNA), condenado a prisão perpétua em 1964.

No Congresso do PN em junho, foi sugerido um plano qüinqüenal para realizar mudanças políticas, que prometiam "participação democrática" à população negra, deixando ao mesmo tempo intactos os fundamentos da segregação. Em atitude surpreendente, no dia 5 de julho o presidente Botha foi conversar com Mandela na prisão. Oficialmente uma "visita de cortesia", mas a oposição insinuou que se tratava de uma jogada política. Dias depois o Governo divulgou comunicado do líder negro, em que ele enfatizava que só o entendimento entre as autoridades e o CNA traria paz ao país.

De Klerk, mais liberal e pragmático que Botha, assumiu a presidência da África do Sul em agosto, garantindo que as eleições legislativas de setembro seriam as últimas sem a participação dos negros. A pressão não parava: no início do mês, negros e indianos, em manifestações apoiadas por muitos brancos, conseguiram que os hospitais de todo o país passassem a atender pacientes de qualquer raça; líderes negros importantes foram libertados em outubro; de Klerk acabou com a segregação nas praias em novembro.

Somente em 11 de fevereiro do ano seguinte, porém, o Governo sul-africano tomaria a medida mais importante e definitiva naquele momento: a libertação de Nelson Mandela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1989

Cinema engajado conquista a tela

No poderoso cinema americano, o ano de 1989, ao começar, parecia destinado a ser o "ano de Batman". O velho herói das histórias em quadrinhos, então relançado em sofisticada e milionária versão cinematográfica, de fato arrebatou as maiores bilheterias do ano, mas não chegou a provocar sequer a metade dos comentários e discussões que se travaram em torno de "Faca a coisa certa" ("Do the right thing"), escrito, dirigido e protagonizado por um até então desconhecido jovem negro, de 32 anos, chamado Spike Lee.

O tema do racismo, efervescente durante a década de 60, há muito perdera o poder de sedução sobre as platéias americanas e, de resto, as do mundo. Os anos 80, ao contrário, endeusavam o individualismo e a posição social em detrimento das utopias de caráter socializante que haviam animado meio mundo, nos anos 50 e 60. Nada disso interessava aos yuppies, militantes de um certo existencialismo de resultados. Eis o território de "Batman,". Inesperadamente, este foi, também, o território em que irrompeu Spike Lee, num filme que custou US$ 5 milhões, quantia irrisória, segundo os milionários padrões de orçamento de Hollywood. Em apenas dois meses, "Faca a coisa certa" arrecadou US$ 25 milhões nas bilheterias americanas, e tal façanha financeira yuppie nenhum foi capaz de ignorar. A façanha tornava-se maior por ser o filme de Spike Lee como um soco no fígado das platéias conformistas alimentadas por clichês, fossem estes brancos ou negros. Racista, fascista, genial, demagógico, irresponsável, panfletário, alegórico—de tudo esse filme foi chamado na América e, logo, Spike Lee consagrava-se como uma espécie de menino-prodígio do cinema americano. E negro.

Tudo acontece num único sábado, por acaso o dia mais quente de um certo verão em Nova York. O centro da ação e a pizzaria de um ítalo-americano, Sal (Danny Aiello), num bairro pobre, agora habitado por negros. Os dois filhos do imigrante ajudam no negócio e Mookie, interpretado por Spike Lee, e o entregador das pizzas. Ao longo do dia, é estimulada pelo calor, a tensão racial vai aumentando entre os donos da pizzaria e sua clientela negra. Quando finalmente irrompe a violência, ela envolve todos: policiais brutais, um quitandeiro coreano, velhos negros desocupados. Moral da história? Perguntado na época sobre qual seria a coisa certa, Spike Lee respondeu: "Não sei. Mas sei qual é a coisa errada: racismo". O cinema engajado de Lee Conquistou seu espaço no mercado americano.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1989

Cientistas fazem confusão nuclear

No dia 23 de março de 1989, dois químicos da Universidade de Utah o americano Stanley Pons e o britânico Martin Fleischmann, foram catapultados para a fama. Numa excitada e excitante coletiva de imprensa, anunciaram ao mundo que o sonho da energia ilimitada, limpa e barata estava prestes a se realizar. Tinham conseguido, disseram eles, obter na temperatura ambiente do laboratório a fusão nuclear, o mesmo processo que gera a energia do Sol. Com a descoberta imediatamente batizada de "fusão fria" (por oposição, no Sol, as temperaturas chegam a 15 milhões de graus centígrados), a notícia espalhou-se como um rastilho de pólvora.

A fusão nuclear e a junção de dois núcleos atômicos de um tipo de hidrogênio, o deutério; processo que, ao ocorrer, resulta na liberação de uma fenomenal quantidade de energia sem o inconveniente da radioatividade liberada pelo urânio das usinas nucleares convencionais e com a vantagem de que o deutério tem na água do mar uma fonte quase inesgotável. O problema, porém, é que para fazer os núcleos de deutério se fundirem, e preciso reproduzir as altíssimas temperaturas solares. Todos os processos conhecidos pelos físicos gastam mais energia do que produzem e só se sustentam por uma fração de segundo.

Por isso, quando os pesquisadores de Utah descreveram a simplicidade de seu experimento, o mundo entrou em polvorosa. Eles tinham mergulhado dois eletrodos, um de paládio, outro de platina, em água rica em deutério. A corrente elétrica produziu tanta energia (na forma de calor), que o eletrodo de paládio se derreteu. A única explicação possível, diziam eles, é que tinha ocorrido a fusão. Imediatamente, laboratórios de todo o mundo puseram-se a duplicar o experimento. Alguns alegaram êxito. Era a "febre da fusão".

Antes que o mês de abril se encerrasse, porém, os ventos já tinham se voltado contra Pons e Fleischmann. A criteriosa revista "Nature" recusou-se a publicar o artigo científico em que relatavam suas pesquisas, alegando insuficiência de dados. Os físicos das instituições mais respeitadas como o institutos de tecnologia da Califórnia e de Massachusetts, acabaram de passar o trator: a verdadeira fusão nuclear produz, além de calor, uma grande quantidade de neutrons e um isótopo chamado hélio-4. No experimento de Pons e Fleischmann nada disso havia sido detectado. Estes argumentaram que tinham encontrado neutrons, mas atrapalharam-se nas explicações.

Acusados por uns de açodamento, por divulgarem seu trabalho na mídia leiga antes de submetê-lo a avaliação de seus pares: e por outros, de pura e simples má-fé, os químicos mergulharam na obscuridade. Foram trabalhar na França, num desconhecido laboratório financiado por empresas japonesas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1989

Alasca, o paraíso coberto de óleo

Na madrugada da sexta-feira, 25 de março de 1989, o capitão Joseph Hazelwood bebia uísque em sua cabine no navio "Exxon Valdez". Tinha deixado nas mãos de um subordinado o leme do super petroleiro de 330 metros de comprimento. O navio saíra pouco antes do porto de Valdez, no Alasca, Estados Unidos, ponto terminal de um oleoduto de 1.200 quilômetros de extensão, e atravessava o Estreito Príncipe William uma delgada faixa de mar ladeada por montanhas geladas e povoada por lontras, focas, aves marinhas e cardumes de salmão, arenque e linguado. De repente o silêncio gelado da madrugada foi cortado por um ruído surdo, o navio sacudido por um estremeção. Em poucos minutos, a bela paisagem branca começou a se tingir de negro.

Nada menos que 36 mil toneladas de petróleo bruto escorreram dos porões do "Exxon Valdez" e se espalharam pelas águas do mar do Alasca, causando o maior desastre ecológico dos Estados Unidos e um dos maiores da História. Comandado por um terceiro suboficial não habilitado a navegação naquele tipo de lugar, o navio pertencente a empresa americana Exxon, um dos gigantes do petróleo no mundo, colidira com um bloco de gelo. Levada pelas correntes, em oito semanas a super mancha tinha se deslocado 750 quilômetros. No total, 1.800 quilômetros de praias ficaram cobertos de piche, em alguns pontos com uma camada de 90 centímetros de espessura.

Bombardeada pelos ecologistas e pressionada pela opinião pública mundial—comovida com as imagens de pássaros, lontras e baleias mortos no meio do óleo—a Exxon mobilizou um exército de 11 mil homens para a inédita operação de limpeza. Equipou-os com 1.400 barcos, 85 aviões e recursos como bombas de sucção e bactérias devoradoras de petróleo. Biólogos limpavam as penas de pássaro por pássaro, lontras eram alimentadas com lagostas frescas, cada pedra de cada praia era meticulosamente lavada e esfregada. O trabalho levou seis meses e custou US$ 1 bilhão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1989

Gênio se despede em grande estilo

O pintor espanhol Salvador Dali morreu em 23 de janeiro de 1989, aos 84 anos, e foi enterrado no museu consagrado a sua obra na sua cidade natal, Figueras. O próprio artista havia supervisionado, entusiasmado, a montagem do Teatro-Museu Dali, inaugurado em 1974. O museu se tornou palco do último grande gesto teatral do gênio espanhol, o enterro, que havia deixado cuidadosamente planejado e esquematizado num de seus típicos acessos de exibicionismo e grandiloqüência. Nos três dias que se seguiram ao enterro a cidade foi tomada por um luto festivo. O túmulo de Salvador Dali se tornou uma das atracões sob a cúpula de 120 metros de seu museu. Ele estava cercado por um imenso painel de seios, um Cadillac-regador com plantas e um guarda-chuva que se abria e fechava continuamente, uma pintura da musa Gala olhando o Mediterrâneo (que, vista de uma distancia de 20 metros, se torna um retrato de Abraham Lincoln), outra de um casal de organistas, e duas esculturas: as mãos de Michelangelo e um guarda de plástico com capa de estanho.

O pintor que se tornou sinônimo de irreverência, grandiloqüência, exaltação do absurdo e da abundância, obcecado por mitos e liturgias, sensualidade e pompa religiosa, viveu um calvário desde a morte de Gala sua musa e amada. Gala era esposa do poeta Paul Éluard quando conheceu o pintor nos anos 20. Logo Dali estava casado com a russa dez anos mais velha que ele, que se tornou tema de inúmeras de suas telas, ora retratada como a Virgem Maria, ora como ninfa, deusa ou imagem de sonho. Para ela, Dali comprou e reformou, em 1974, um castelo em Pubol, Espanha, no qual ela seria enterrada, em 1982, num túmulo projetado pelo artista. Para ficar perto da sua amada, Dali se mudou para o castelo de Pubol. vivendo isolado—e pintando seu ultimo quadro, "A cauda de Andorinha"—até ser seriamente queimado num incêndio em seu quarto, ocorrido em 1984. Ele então se mudou para o apartamento que havia projetado na Torre Galatea, anexa ao Teatro-Museu Dali, onde viveu até a morte.

Após o incêndio as condições de saúde de Salvador Dali foram se deteriorando e, em 1986, ele teve de implantar um marcapasso. O pintor morreu, num hospital em Figueras, de complicações respiratórias e parada cardíaca. A imensa fortuna que acumulou e o conjunto de seus bens e obras foram deixados em testamento para o Estado espanhol em função de um acordo feito em 1982, que Ihe conferiu um título de nobreza—marques de Pubol—garantiu uma grande mostra da sua obra e perdoou as dívidas que tinha com o imposto de renda. Desaparecia um artista que fez de tudo para divulgar tanto sua obra quanto sua pessoa, com tão bons resultados que uma pesquisa com o público realizada em Londres pelo jornal "Sunday Times" o colocou em oitavo lugar numa lista dos pintores favoritos de todos os tempos. Apenas dois outros artistas em atividade no século XX, Monet e Munch, entraram na lista dos dez mais.

Fonte: O Globo - Texto integral