Em 1984 as principais manchetes foram estas:

O Brasil quer votar (e já) para presidente

Retaliação sikh mata a 'Mãe Índia'

O mais terrível acidente industrial

O poder chegou tarde demais

Socorro tarda, falha e não evita tragédia

O império sofre o contra-ataque

Tudo por fama, glória e dinheiro

Filosofo do sexo e vítima da Aids

Ritmo e poesia sacodem a música

Épico existencial comove a década

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1984

O Brasil quer votar (e já) para presidente

No inicio, eram cinco mil gatos pingados; no final, mais de um milhão de pessoas, que só queriam uma coisa: eleições diretas para presidente. A campanha das "Diretas já!" reuniu, entre junho de 1983 e abril de 1984, a maior concentração de povo que este pais já conheceu, e isto em pleno regime militar.

É verdade que a ditadura já não era mais aquela dos anos 70, feroz e assassina, mas ainda cuspia fogo. O esgotamento da ditadura militar acelerara-se com a esclerose galopante do general-presidente; pior que isto, a falta de um operador político—posto vago desde a morte de Petrônio Portela, em janeiro de 1980 —privou o Governo de um mínimo de racionalidade. Sobrou o general Golbery, perdido em seus devaneios maquiavélicos, sem ter quem Ihe executasse os projetos. Mas este também se cansou—e pediu demissão em agosto de 1981.

As eleições de 1982 já refletiram esta "nau dos insensatos" em que se transformara o Governo Figueiredo. Mesmo com o pluripartidarismo, reinstaurado para dividir a oposição e manter unida a tropa governista, o Governo não conseguiu maioria absoluta na Câmara dos Deputados; nos estados, a oposição conquistou dez governos (em 22): nove do PMDB e um do PDT.

Economicamente, a situação era igualmente péssima. E nada ilustra mais eloqüentemente a derrocada dos delírios de grande potência que a viagem da trinca Delfim-Galvêas-Langoni a Nova York, no Natal de 1982, para comunicar aos banqueiros internacionais que o Brasil estava quebrado. Inesquecível.

Neste quadro de degenerescência. começa a grassar a idéia da eleição direta. Dante de Oliveira (PMDB-MT), deputado estreante, apresenta, em março de 1983, emenda constitucional restabelecendo as eleições diretas para presidente da República. De inicio, quase ninguém presta atenção. até que a direção nacional do PMDB empunha a bandeira: primeiro o senador Teotônio Vilela, depois o deputado Ulysses Guimarães, quase escoteiros. A campanha começa tímida, ganhando corpo devagar, com comícios no interior, testando a adesão da sociedade, fortalecendo os músculos para comícios mais robustos.

E de repente, aconteceu o "estouro da boiada": multidões cada vez maiores acorriam aos comícios. E vieram também as forcas políticas de oposição, que naquele momento decidiram por de lado divergências antigas e inconciliáveis. Juntaram-se o PCB, o velho Partidão, em sua doce obsolescência; o PC do B. em seu ferrenho anacronismo; o PT, com seu entusiasmo quase infantil; o PMDB, herdeiro da chama de resistência do velho MDB; alguns ícones do exílio, e até mesmo curiosas sobrevivências caudilhescas como o PDT, com seu líder máximo a pregar um tal de socialismo moreno— ninguém jamais soube do que se tratava—e a clamar, com sua retórica telúrica, contra as "perdas internacionais".

Os meios de comunicação, de inicio hesitantes, terminaram por seguir a liderança da "Folha de S. Paulo", quando perceberam que o movimento era noticia, e das boas; rádios e TVs passaram a cobrir os comícios, contribuindo para engrossar ainda mais a adesão popular. Artistas e intelectuais, que aderiram entusiasticamente, assumiram o proscênio, e isto foi fundamental para fortalecer o caráter suprapartidário e preservar egos e vaidades. Uma única liderança politica era aceita por todos: um jovem de 67 anos, fôlego de garoto, 40 anos de experiência pessedista, vestindo uma camiseta amarela com os dizeres: "Eu quero votar pra presidente". Ele mesmo, o Dr. Ulysses. Oratória tradicional, voz penetrante, gestos largos, arrastava a todos com a forca de sua convicção e seu poder de persuasão. No Natal de 1983, em Nova York, o Dr. Ulysses lança sua candidatura a presidência em eleições diretas, e em 25 de janeiro seguinte acontece o primeiro comício-monstro, na Praça da Sé em São Paulo. A idéia das eleições diretas era plenamente vitoriosa na sociedade. No inicio de abril, um milhão de pessoas se reúne em frente a Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, e no encerramento da campanha, outro milhão volta a se reunir na Praça da Sé.

O regime não quis correr riscos desnecessários; por isso, na véspera da votação da emenda, Brasília foi colocada em estado de emergência, situação que o compositor Billy Blanco descreveria como "emergência de gafieira": quem esta fora não entra, quem esta dentro não sai. A população respondeu com o maior buzinaço da história da capital, e outra imagem inesquecível e a do general Newton Cruz, chefe da agencia do SNI em Brasília, brandindo pateticamente seu rebenque no capo dos automóveis. Uma pintura, como se dizia antigamente.

Mas, no dia seguinte, veio o amargo despertar. No fatídico 25 de abril. a Câmara dos Deputados rejeitou a emenda Dante de Oliveira por apenas 22 votos. Só que desta vez as oposições estavam preparadas e retiraram sua carta da manga: a candidatura do governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, no Colégio Eleitoral. Frutos da frondosa arvore politica do pessedismo, Tancredo e Ulysses eram duas faces da mesma moeda: a volta do pais ao Estado de direito. Sobreviventes de tempos mais cordiais, dedicaram-se a liderar a longa travessia durante os difíceis anos da ditadura: Ulysses consolidando se como firme bússola da sociedade e da oposição, Tancredo sedimentando seu prestigio entre a classe politica e mantendo abertos seus canais de comunicação com os militares menos radicais. Ilusão pensar que os dois não se afinavam. Tolo era quem tentava interpor-se entre eles.

Derrotada a emenda, tratava-se agora de compensar a decepção popular, com uma vitória no Colégio Eleitoral, que mandaria os militares de volta para os quartéis, operando uma transição negociada, uma "transição pela transação". Para isso, foi necessário engolir cobra, jacaré e elefante e aceitar, ironia máxima, Jose Sarney, notório enfant gaté da ditadura, como candidato a vice.

A campanha eleitoral foi das mais esdrúxulas de que se tem noticia: uma eleição indireta movida a monumentais comícios por todo o pais, pois a sociedade, inebriada com seu próprio poder de mobilização, não queria mais voltar para casa. A campanha "Muda Brasil: Tancredo já!" aproveitou o embalo da campanha das diretas e empolgou todo o pais a exaustão do regime e a debandada nas hostes governistas fez o resto. Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito pelo Colégio Eleitoral, encerrando 21 anos de desastrosa intervenção militar e recebendo como legado um pais falido: divida externa de US$ 100 bilhões, inflação de 223% ao ano.

Mas a doença e a angustiante agonia de Tancredo Neves prolongaram ainda mais esta saga. Para tudo se acabar em 21 de abril, no cemitério de São João del Rei, com um pedreiro cimentando caprichosamente seu túmulo, enquanto o reboco respingava nos sapatos novos do enfant gate da ditadura, transformado, por capricho do destino, no primeiro presidente civil desde João Goulart. O acerto de contas com a História ficaria para depois.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1984

Retaliação sikh mata a 'Mãe Índia'

Ao se dirigir para um encontro com o ator inglês Peter Ustinov, que estava realizando um documentário sobre ela, Indira Gandhi, a primeira-ministra da Índia foi assassinada aos 66 anos, em 31 de outubro de 1984, no jardim de sua casa em Nova Délhi.

Nos quase 20 anos em que governou a Índia Indira havia revelado coragem, percepção e espirito independente inesperados, administrando uma sucessão quase interminável de graves crises internas. A tradição do assassinato político, entretanto, tão freqüente no pais, e que já vitimara o próprio Mahatma Gandhi, um apóstolo da não-violência, parecia não assustar a 'Mãe Índia'—como era chamada pelos pobres, por causa de sua luta para impor ao pais o lema "garibi hatão" ("eliminar a pobreza"). Não cuidava, portanto, da segurança pessoal, a ponto de manter, como guarda costas, os dois sikhs que perfurariam o seu corpo com 30 tiros.

Indira tampouco temia uma retaliação pelo fato de ter ordenado, cinco meses antes, a invasão do Templo Dourado, em Amritsar. Sitio mais sagrado dos fanáticos sikhs, ele havia sido tomado por extremistas fortemente armados, que exigiam a formação de um estado independente, a se chamar Calistão. Indira foi forçada a agir para deter a ação da seita, ordenando a tomada do santuário, com tanques e morteiros. O que se seguiu foi um massacre, que resultou na morte de 90 soldados e 712 militantes sikhs.

A religião sikh, criada no século XVI, fundira o islamismo e o bramanismo, pregando a paz e combatendo a intolerância religiosa. Assim sendo, os seus seguidores conviveram pacificamente com os hindus, mas só até a independência da Índia do colonialismo britânico em 1947. Decepcionados com a partilha do pais, os sikhs (que significa "os seguidores"), habitantes do Punjab, no Norte, começaram a exigir a criação de um estado independente. Essa exigência passou a ser feita através de ações cada vez mais violentas, até explodirem no episódio do Templo Dourado e no assassinato da primeira-ministra.

Horas depois da morte de Indira, o seu filho Rajiv Gandhi, de 40 anos, assumiu o cargo e procurou promover a reconciliação, fazendo algumas concessões aos lideres menos radicais dos separatistas, mas logo teve que enfrentar uma nova onda de atentados, o que agravou a cisão entre hindus e sikhs. O seu governo foi todo marcado por conflitos étnicos e, em 1989, ele renunciou, após o seu partido perder a maioria no Congresso. Dois anos de pois, porem, com a maioria recuperada, Rajiv iniciaria uma campanha para voltar ao poder. No entanto, seguindo a trágica tradição do pais, foi assassinado por separatistas do grupo tâmil, do Sri Lanka.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1984

O mais terrível acidente industrial

Parecia que a fabrica da empresa americana Union Carbide em Bhopal, capital do estado indiano de Madhya Pradesh, tinha o destino sinistro já traçado. Desde que fora inaugurada, em 1977, registraram-se seis acidentes "operacionais", com pelo menos uma morte confirmada e cerca de 50 feridos. E, na madrugada de 3 de dezembro de 1984, aconteceu la o mais terrível desastre industrial da História. O mortal isocianato de metila, uma das substancias usadas na produção de pesticidas, vazou, sob a forma de gás, de um reservatório de 45 toneladas e foi se acumulando na atmosfera até formar uma densa nuvem. Quando a válvula defeituosa foi consertada, o escapamento já durava uns 40 minutos.

Enquanto a nuvem ia cobrindo a cidade, a começar pelos cortiços vizinhos a fabrica, animais e pessoas—a maioria adormecida—sofriam os efeitos do gás. Ao reagir com a água do corpo, ele atinge primeiro as narinas e os olhos, e costuma cegar. Em seguida, chega aos pulmões e, se nãO houver socorro imediato, provoca parada respiratória e morte. Calcula-se que, em minutos, matou 200 pessoas e seguiu ameaçando os 672.000 habitantes da cidade. A brisa suave que soprava foi incapaz de dissipar com rapidez o nevoeiro assassino. No final da semana, eram 2.500 mortos e 50 mil contaminados, com problemas respiratórios, de cegueira e esterilidade.

As investigações constataram que havia sistemas de segurança desligados, a manutenção dos equipamentos era inadequada e o treinamento do pessoal especializado era insuficiente, tudo em nome da economia. O que não acontecia na fabrica americana de pesticidas da Union Carbide. A revolta dos indianos era tanta que o presidente da empresa, Warren Anderson, foi preso ao chegar a Bhopal. Acusado de "negligencia e co-responsabilidade criminosa", ele só seria liberado após demoradas negociações.

Passados sete anos da chuva de ações contra a Union Carbide, a multinacional fez um acordo para pagar uma indenização total de US$ 450 milhões as famílias atingidas. A quantia significava cerca de US$ 150 mil por cada pessoa morta, aquela altura na casa das três mil. Mas a perda de vidas não parou. Em 1994, dez anos após o acidente, o total de mortes atingira 4.500, alem dos 200 mil gravemente afetados de uma maneira ou outra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1984 

O poder chegou tarde demais

O mais curto período de poder exercido por um governante máximo, em toda a história de mais de sete décadas da hoje extinta União Soviética, teve como protagonista o caucasiano Yuri Vladimirovich Andropov, descrito por um biógrafo como um político de horizontes amplos e ambiciosos, mas que chegara ao poder tarde demais. Após dirigir, na qualidade de secretário-geral do Partido Comunista soviético, em 1983, os funerais de Leonid Brejnev, Yuri Andropov foi indicado sucessor, acumulando os cargos de primeiro-ministro, secretário-geral do PCUS e presidente da Republica.

Tinha 68 anos quando tomou posse, em junho de 1983. Sua saúde, muito debilitada por diabetes, demorou pouco a demonstrar que faltavam, ao recém-empossado líder da segunda maior potência do mundo de então, as forcas que o cargo exigia.

O ex-marinheiro, nascido em 15 de junho de 1914, desde cedo perseguiu com tenacidade o ideal de chegar aos pontos principais da hierarquia comunista que dirigia o pais. De 1940 em diante, galgou progressivas posições de mando, até que, aos 33 anos de idade, foi escolhido secretario do PCUS na região da Carélia finlandesa, recém-anexada pela URSS.

Nesse mesmo ano, foi chamado a Moscou para exercer tarefas cada vez mais importantes no Ministério das Relações Exteriores. O cargo iria alargar sua visão dos problemas internacionais. Quando os tanques soviéticos esmagaram a tentativa de liberação dos húngaros, em 1956, Andropov era o embaixador em Budapeste. Na ocasião, empenhou-se na busca de uma solução negociada, e não violenta, como a que acabou acontecendo.

Segundo o alemão Wolfgang Leonard, autor de dez livros sobre a União Soviética, Yuri Andropov destacava-se, na alta burocracia soviética, pela inteligência, rapidez de raciocínio e nível cultural, com uma queda pelo jazz. Assim, qualificava-se, muitos graus acima do antecessor Brejnev, na tarefa de consolidação da chamada détente com o Ocidente, cujo ideal era o de substituir a Guerra Fria pelo desarmamento das superpotências militares.

Morto Andropov, em agosto de 1984, morria também a esperança de arejamento, tanto nos quadros do poder soviético quanto nas relações do pais com o restante do mundo. E o tal "sangue novo" na URSS, tao festejado pelos esperançosos defensores da paz mundial, foi substituído pelo velho Konstantin Tchernenko, de 72 anos, representante do antigo aparato dos tempos de Brejnev. O sonho de rejuvenescimento haveria de esperar outros dois anos, até que, morto Tchernenko, assumisse o poder Mikhail Gorbatchov, aos 52 anos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1984 

Socorro tarda, falha e não evita tragédia

Em 1984, a Etiópia, um dos países mais pobres do mundo, enfrentava a sua pior seca em 15 anos, enquanto se desenrolavam combates entre tropas do Governo e rebeldes separatistas da província da Eritréia. De uma só vez, o pais sofria os efeitos de dois dos mais temidos flagelos da Humanidade: a fome e a guerra. Os mortos atingiriam o total de um milhão.

Em fins de setembro, calculava-se que 200 mil pessoas já tinham morrido, por não terem o que comer. Dois meses depois, previa-se que, até o fim do ano, o numero poderia chegar a 500 mil. Era uma repetição, em maior escala, da tragédia ocorrida em 1973, quando o pais era governado pelo imperador Hailé Selassié, dono de uma fortuna avaliada em US$ 100 milhões, e 300 mil pessoas morreram de inanição. Em 1984, o pais era administrado pelo coronel marxista Mengistu Hailé Mariam, que, naquele ano, havia importado 500 mil garrafas de uísque. Mas, depois que, em outubro, a TV mostrou ao mundo as dimensões da catástrofe, as nações desenvolvidas começaram a agir.

O socorro, porém, chegou tarde. Àquela altura, muitos etíopes desmanchavam suas casas, para tentar trocar a madeira por comida. As sementes, que deveriam ser plantadas para a safra seguinte, serviram de alimento. Tragicamente, o jogo político atrasou as ações humanitárias. A Casa Branca, por exemplo, temia que a ajuda que os Estados Unidos poderiam enviar fosse utilizada como moeda politica e que os habitantes das regiões dominadas pelos rebeldes não recebessem comida. No final do ano, o governo de Adis Abeba decidiu remover, para o sul do pais, um milhão de moradores das zonas mais afetadas pela seca. Duzentas mil pessoas morreram nessa migração forcada, vitimas de doenças, das mas condições de alojamento e de falta de assistência medica. Passado um ano da divulgação da tragédia pela TV, ainda morriam de fome, por dia, dois mil etíopes, apesar de só os Estados Unidos terem contribuído com US$ 1 bilhão para a campanha humanitária.

No final de IS87, a história se repetiu. Uma nova seca e a mesma guerra colocaram em risco a vida de cinco milhões de pessoas. Dessa vez, a comunidade internacional se mobilizaria com mais rapidez. Mas, na África, a fome e uma endemia: em 1991, os famintos da Etiópia precisariam dividir sua escassa comida com os miseráveis que cruzavam a fronteira com a Somália, fugindo de mais uma guerra civil.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1984

O império sofre o contra-ataque

Não deu outra. Tal como acontecera em Moscou, quatro anos antes as Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, foram prejudicadas por motivos políticos. Em protesto contra a invasão do Afeganistão, os Estados Unidos e países aliados haviam decidido boicotar os jogos de 1980 disputados na então União Soviética. Em represália, para não competir nos EUA, os soviéticos apresentaram varias alegações, como a poluição e a falta de segurança nas ruas de Los Angeles, alem da crescente mercantilização do esporte, com a participação de atletas profissionais. Por outro lado, os soviéticos também protestavam contra a instalação de mísseis americanos Pershing na Europa.

O boicote proposto por Leonid Brejnev teve a adesão de 16 países da antiga Europa Oriental, ainda sob governos comunistas. No entanto, outros 140 países enviaram delegações a Los Angeles, e foi a primeira vez, desde 1896, que os jogos foram realizados sem nenhuma ajuda governamental, marcando o inicio de uma nova era, a da parceria de empresas internacionais com o Comitê Olímpico. A administração da olimpíada foi entregue a uma comissão de 62 empresários e representantes da sociedade civil, e logo surgiram o refrigerante e uma enorme variedade de produtos "oficiais" com a marca dos jogos.

Houve muita reação dos que achavam que as aspirações do Barão de Coubertin, que fez renascer, no século XIX, os ideais dos Jogos Olímpicos, estavam sendo desvirtuados. Isso, porem, de nada adiantou, pois a comercialização tinha vindo para ficar, e a organização olímpica se modernizou dai para frente.

O boicote soviético deixou sua marca em Los Angeles, mas ela merece ser lembrada, também, pelas conquistas dos atletas, com destaque para o fenômeno Carl Lewis. O americano do Alabama prometera repetir o feito de Jesse Owens, em 1936, e conquistar quatro medalhas de ouro. E cumpriu a promessa, nos 100 metros rasos, no salto em distancia, nos 200 metros (quebrando o recorde olímpico, em vigor desde 1968) e no revezamento 4 X 100. Sem a presença de seus mais tradicionais adversários, os Estados Unidos dispararam no quadro de medalhas: 83 de ouro, 61 de prata e 30 de bronze, no total de 174. Sintomaticamente, em segundo lugar ficou a Romênia (único pais do bloco comunista a furar o boicote), com 20 ouros, 16 pratas e 17 bronzes.

Décimo nono lugar na classificação geral, o Brasil teria ao menos a alegria de conhecer um herói. Joaquim Cruz, filho de um operário e de uma dona-de-casa de Taguatinga, no Distrito Federal, ganhou, nos 800 metros, a única medalha de ouro para o pais, enfrentando oponentes do nível do inglês Sebastian Coe, recordista mundial da distancia.

O Brasil ainda ganhou prata no vôlei masculino, na natação (com Ricardo Prado), no futebol, na vela (com Torben Grael, Daniel Adler e Ronaldo Senft, na classe Soling) e no judo (Douglas Vieira, meio-pesado). Do judo, vieram também as duas medalhas de bronze conquistadas: Luis Onmura, peso leve, e Walter Carmona, peso médio. Foram apenas oito medalhas, e só uma de ouro, mas nunca o Brasil ganhara tanto numa olimpíada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1984 

Tudo por fama, glória e dinheiro

Em 23 de abril de 1984, uma descoberta atraiu a atenção até mesmo de quem não se interessa por ciência. Em Bethesda, cidade no estado americano de Maryland, o Instituto Nacional de Saúde anunciou que o vírus da Aids havia sido isolado pelo doutor Robert Gallo. Em 28 de maio do ano seguinte, os americanos registraram a patente do método de diagnóstico dos anticorpos por meio de exame soro lógico. O problema e que o mesmo anuncio tinha sido feito, em 1983, pelo francês Luc Montagnier, do Instituto Pasteur de Paris. Começava, então, uma briga, por fama, glória e dinheiro, repleta de idas e vindas.

De acordo com Montagnier, Gallo fizera seus estudos com amostras enviadas da França. Gallo negou. O francês, então, alegou ser possível que o americano não tivesse roubado a descoberta intencionalmente, apenas se precipitado ao divulgar os resultados de suas pesquisas. A longa briga envolveu periódicos científicos, como a revista "Nature", em mais um capitulo intrincado, numa discussão que durou dez anos.

Em 1985, o Instituto Pasteur iniciou um processo judicial contra seu congênere americano, pelo direito a patente do método de diagnóstico, que tentava registrar nos Estados Unidos desde 1983 e do qual havia perdido a prioridade. Gallo foi acusado de falsificar suas pesquisas para patentear o método de diagnóstico, que rende milhões de dólares em royalties. Em 1987, a querela ainda perdurava, e Montagnier e Gallo insistiam em reivindicar os direitos sobre a descoberta. Naquele ano, fariam um acordo, assinado também pelos presidentes dos Estados Unidos e da Franca, para serem declarados co-descobridores e dividirem os US$ 6 milhões anuais em direitos.

O acordo foi desfeito, em dezembro de 1992, depois de o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos julgar que Gallo mentira para tirar todo o mérito do trabalho de Montagnier. No ano seguinte, o Escritório para a Integridade das Pesquisas, ao qual caberia decidir se Gallo responderia pela acusação, considerou as provas insuficientes, aceitando a argumentação de que não ocorrera má-fé ou fraude. Na verdade, o americano foi salvo por um terceiro personagem, Mikulas Popovic. O tcheco, que trabalhava no mesmo laboratório de Gallo, era alvo de um processo paralelo, acusado de ser o principal fraudador das pesquisas. Posteriormente, o Departamento de Saúde admitiu que o processo contra Popovic foi conduzido de forma apressada e que não existiam evidencias para incriminá-lo. Por não conhecer perfeitamente o idioma inglês, ele teria cometido erros de linguagem. Finalmente, em 1994, as autoridades americanas admitiram que a primazia da descoberta era dos franceses.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1984 

Filosofo do sexo e vítima da Aids

Critico das técnicas de tratamento psiquiátrico, o filósofo e historiador francês Michel Foucault morreu em decorrência da Aids no Hospital Salpetrière, de Paris, uma instituição dedicada a doentes nervosos. Era 25 de junho de 1984 e Foucault, com 57 anos e uma das figuras mais destacadas do estruturalismo francês, tinha acabado de lançar mais dois volumes de sua "História da sexualidade", após oito anos ausente das livrarias.

Com 16 obras publicadas, Foucault rejeitou sistemas filosóficos como o marxismo e a psicanálise e buscou investigar as diversas formas de exercício do poder através de uma abordagem original, da forma como ele foi sentido pelos marginais de épocas diversas. As suas polemicas idéias sobre o poder, que devem muito a Nietzsche, o levaram ao estudo da sexualidade. Para ele, o equilíbrio do comportamento sexual e a experiência mais fundamental de controle social do indivíduo. Afirmou, também, que as grandes verdades humanas foram proferidas por pessoas que beiravam a loucura e dizia que as prisões produzem delinqüentes, assim como cada pessoa esta submetida a mil formas de punição, na escola, no trabalho, em toda parte.

O filósofo nascido em 1926 em Poitiers, centro da França, foi uma espécie de guru dos pensadores de vanguarda da atual idade . Deixou uma extensa obra sobre medicina, história e ciência politica. Esteve varias vezes no Brasil, dando palestras no Rio, em São Paulo, na Bahia e em Belém. Na ultima vez, em 1978, foi palestrar na Universidade de São Paulo (USP), mas ao saber que os estudantes estavam em greve, devolveu o dinheiro e disse que não daria aulas numa universidade sitiada.

Homossexual, defendeu as minorias, lutou contra os preconceitos raciais e defendeu movimentos como o Solidariedade, na Polônia.

Suas conferencias lotadas de estudantes, nos anos 60, o colocaram como um dos incentivadores do movimentos de maio de 1968, na Franca. Embora não gostasse de se envolver em politica partidária, Foucault chegou a ingressar no Partido Comunista. Sua obra inacabada, "História da sexualidade", e um estudo das atitudes e identidades sexuais desde os dias das antigas Grécia e Roma.

Ele foi um dos protegidos do filósofo marxista Louis Althusser, que escandalizou a intelectualidade francesa, ao enforcar a esposa, em setembro de 1980. Com a exposição de suas preferencias sexuais, após a morte, as idéias de Foucault passaram a sofrer certa rejeição, principalmente após ser revelado que era sadomasoquista e teria se exposto propositadamente a Aids.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1984

Ritmo e poesia sacodem a música

Embora não tenha sido o inventor do gênero, a história do rap bem pode ser escrita a partir do surgimento do Run-DMC. Pois Joseph "Run" Simmons, Darryl "DMC" McDaniels e o DJ Jason "Jam-Master Jay" Mizell, nascidos no Queens, Nova York, foram os primeiros a vender 500 mil cópias de um álbum do gênero, o "Run-DMC", em 1984. E o grupo também foi pioneiro na exibição de um clipe de rap (iniciais de "rhythm and poetry", ritmo e poesia, em inglês) na MTV americana.

O grupo foi formado em 1982, quando Run e DMC recrutaram Mizell para tirar efeitos dos toca-discos. No ano seguinte, o trio lançou seu primeiro compacto, "It's like that/Sucker MC's", pela pequena Profile Records, e alcançou o topo da lista das 20 mais do rhythm’n'blues (designação que no mercado dos EUA abarca todo tipo de musica negra, alem do rhythm' n' blues propriamente dito).

Na incandescente cauda do cometa Run-DMC—um sucesso estrondoso também com seu segundo trabalho, "King of rock", de 1985 —outros grupos de rap ganharam destaque, como os Beastie Boys (brancos) e o Public Enemy (negros). Em "King of rock", de 1985, o Run-DMC ia alem e fundia o rap com o velho rock’n'roll, numa experiência inédita.

A receita rock + rap fincou pé na corrente principal da musica pop no ano seguinte, quando "Walk this way", do Aerosmith, ganhou nova versão no terceiro disco do Run-DMC, "Raising hell". A faixa, que contava com a participação do vocalista Steven Tyler e do guitarrista Joe Perry, injetou novo animo na carreira do grupo de rock, então meio por baixo. No entanto, sem conseguir acompanhar as exigências do mercado, cujo publico estava mais interessado na ferocidade panfletária de um Public Enemy do que na sua mistura de influencias, o próprio Run-DMC começou a fazer água em seu quarto álbum, "Tougher than leather". Os problemas se agravaram com o disco seguinte, "Back from hell". Ao mesmo tempo que despencavam das paradas, McDaniels aliviava a angustia no alcoolismo. Simmons, por sua vez, foi acusado de violência sexual.

Foi nesse contexto de decadência que o trio se apresentou no segundo Rock in Rio, no Maracanã, em janeiro de 1991. Nessa época, alias, o rap que o Run-DMC ajudou a popularizar já havia se espalhado pelo mundo, Brasil inclusive, onde artistas como Gabriel O Pensador, Thaíde e os Racionais MC’s dão ao gênero tintas locais. E a multifacetada musica eletrônica dos anos 90 projetou o legado do rap—e, por extensão, o do Run-DMC—para o futuro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1984 

Épico existencial comove a década

Em 1984, uma co-produção franco-alemã com o estranho titulo de "Paris, Texas" ganhava a Palma de Ouro e dois outros prêmios no Festival de Cannes consagrava Wim Wenders. O cineasta alemão e o dramaturgo americano Sam Shepard haviam unido seus talentos para levar a tela um road movie existencial, um anti-épico sobre a trágica separação de uma família e o esforço de um homem para encontrar a si mesmo e refazer suas relações.

A história assinada por Shepard, baseada em seu livro "Crônicas de motel", girava em torno de Travis (magnificamente interpretado por Harry Dean Stanton). Catatônico, ele vagava havia quatro anos pelo deserto do Texas em busca do local onde seus pais o conceberam, na primeira vez que fizeram amor. Esta busca ao ponto de partida, a cidadezinha de Paris, acontece depois que ele sucumbe ao ciúme, ao álcool e ao mutismo, rompendo com a família e desaparecendo. Certo dia. durante suas andanças, Travis perde a consciência. O irmão Walt (Dean Stockwell), que cria o sobrinho Hunter (Hunter Carson ), e chamado em Los Angeles para resgata-lo. O reencontro de pai e filho gera ansiedade na família.

Aos poucos, Travis sai de seu mutismo, recupera o verbo e reconquista a confiança do garoto. Ao final, depois de fugir com ele, localiza a ex-mulher (Nastassja Kinski, mais linda do que nunca) num peep show, uma daquelas casas de tolerância para voyeurs, em Houston. A cena em que ela fala com o ex-marido através de um espelho, através do qual ele a vê sem ser visto e o ponto alto do filme (são oito minutos. sem cortes). Promovido o reencontro entre mãe e filho, um apaziguado Travis parte mais uma vez, agora em busca de si mesmo. Ao fundo, a desolada trilha sonora de Ry Cooder.

Wenders assim prosseguia a sua obra, em que o nomadismo, a ausência de pátria, as referencias cinematográficas, o temor do futuro, a crise das relações e do cinema são matérias-primas recorrentes. Por exemplo, o cineasta promove os encontros dos personagens somente por vias indiretas, como um filme em Super-8, a indicar a dificuldade de comunicação entre os homens e a missão do próprio cinema. "Paris, Texas" cumpriu sua missão: comoveu as platéias dos anos 80 em diante.

Fonte: O Globo - Texto integral