Em 1952 as principais manchetes foram estas:

Morre Eva. Viva o mito Evita Perón

Outro passo em direção ao Fim

A soberana do Commonwealth

O primeiro negro a retomar a África

O missionário da paz em Lambaréné

Cage instala o silêncio na música
Nasce o moderno tranqüilizante

A apoteose do cinema cantado

Tempo real no Velho Meio Oeste
Uma locomotiva entre os voadores

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1952

Morre Eva. Viva o mito Evita Perón

Menininha provinciana não propriamente bonita, filha ilegítima, atriz de terceira, cantora medíocre, modelo de comerciais vagabundos, radialista razoável, especulam as más línguas que tecnicamente prostituta. Mas foi assim que o Governo argentino anunciou sua morte de um câncer não tratado, aos 33 anos, na noite de 26 de julho de 1952: "Es el triste dever de la Secretaria de Prensa Y Difusion de la Presidencia de informar al pueblo argentino que Eva Perón, jefe espiritual de la nación, entro en la inmortalidad a las 20 e 25 del dia de hoy".

O que aconteceu para a obscura Maria Eva Duarte morrer como Evita Perón foi, talvez e muito provavelmente, a primeira e mais fantástica criação de um mito contemporâneo (no sentido em que gestado pelos meios de comunicação de massa) na vida política latino americana. E mundial, se considerar que Kennedy explodiria, de outra maneira, somente uma década depois.

Discutida, estudada, transformada em ópera-rock de sucesso (o musical "Evita", de Andrew Lloyd Weber e Tim Rice), que depois virou filme com Madonna, o certo é que o mito Evita é a mais bem sucedida encarnação do populismo. O estilo político que pretende transcender o Estado, as instituições, a sociedade organizada para uma representação "direta" do "povo" encontrou na "chefe espiritual da nação" argentina o ícone perfeito: artificialmente bela (pintou o cabelo de louro, só para começar); exagerada no vestir, com direito a modelos vindos de Paris diariamente; infinitas jóias e sapatos, qual uma estrela de cinema da anedota; engajada pessoal e diariamente no assistencialismo aos "descamisados"; protagonista de notável ascensão social ao se casar com homem poderoso; de um passado suspeitíssimo convertido em devoção total ao pai dos pobres argentinos, o militar-presidente de insuspeita vocação fascista, Juan Domingo Perón. Como uma emergente avant la lettre, Eva Duarte também caiu nas graças do povão ao peitar a esnobe elite portenha, que a rejeitou por seu jeito vulgar, seu castelhano cheio de erros e impediu que, na tradição das primeiras-damas, assumisse o órgão assistencial do Governo. Ela não se fez de rogada, criou o próprio instituto assistencialista, sob o desprezo da elite mas de braços dados com a ralé, com apoio dos sindicatos pelegos, braço popular de Perón. Mas ela não se restringia ao assistencialismo: instalada numa sala do Ministério do Trabalho recebia lideres operários, resolvia conflitos (sempre, aparentemente, na defesa do trabalho contra o capital), percorria o pais defendendo em discursos inflamados as políticas sociais do marido.

A origem humilde e ambiciosa de Eva Duarte aparentemente ensinou a ela o que o povo queria, teórica (em discursos) e praticamente (na farta distribuição de "cala-bocas" materiais). Bem escorada por sua equipe, recebia pessoalmente os descamisados, chamava-Ihes pelo nome, perguntava pela família e supria suas necessidades mais imediatas como brinquedos para as crianças, remédios, muletas etc. Resultado: e mito ate hoje, o que fez com que, nada surpreendentemente, muitos argentinos engrossassem fileiras de protesto quando do lançamento do filme "Evita" (ruim porem desmistificador) em Buenos Aires, sob o incentivo até de membros do governo dito peronista de Menem.

Muito já se escreveu sobre Evita, sob todos os pontos-de-vista imagináveis, sobretudo o psicológico, que defende, com facilidade, as humilhações passadas por Eva Duarte na infância como munição de sua ambição sem limite. O fato e que a personalidade de Eva foi fundada numa humilhação típica de interiores de países de forte moral católica: ela foi filha bastarda.

Maria Eva Duarte nasceu no dia 7 de maio de 1919 no pequeno povoado de Los Toldos, filha de um pequeno estancieiro da região, que já tinha uma família oficial quando ela nasceu. Até o pai morrer, sete anos depois, não faltou nada de material a Eva mas sobrava achincalhe a sua situação de bastarda, reforçada pela proverbial maldade infantil, incentivada pelas mães preconceituosas. Depois disso, sua mãe a levou para Junin, onde estudou e mostrou um discreto pendor para o teatro. Ao mudar-se para Buenos Aires aos 16 anos, em 1935, começou uma longa e aparentemente infrutífera carreira artística, com todos os estigmas que a profissão então conferia a mulheres, sobretudo as pobres e/ou provincianas como Eva. Ela reforçou o preconceito ao manter estreita ligação com homens ligados ao poder, geralmente políticos, que propiciaram seu encontro, em 1943, com o então Secretario do Trabalho e Previdência, o coronel Juan Domingo Perón.

Apenas dois anos depois, incomodado com a intensa popularidade de seu secretario, o presidente argentino general Edelmiro Julian Farrel deu um jeito de prender Perón. A prisão não só detonou de vez a carreira política de Perón como fez nascer, de Maria Eva Duarte, o mito Evita. Locutora de um programa de radio, ela foi a porta-voz dos descontentes com a prisão de Perón, mobilizou sindicatos, promoveu uma greve e, posteriormente, uma enorme manifestação na Plaza de Mayo, que culminou com a sua libertação. Logo depois, Evita ganhou o sobrenome Perón ao casar-se com o coronel. Ela tinha 27 anos, ele, 52.

Um ano depois, em 1946, Evita e Perón protagonizariam intensa campanha eleitoral que o elegeria finalmente presidente. Sem cargo definido, Evita tornou-se uma eminência parda no Governo. Em 1947, numa viagem oficial a Europa, consolidou-se como mito: foi recebida pelo Papa, ajudou com recursos da então próspera Republica Argentina os países destruídos pela Segunda Guerra, comportou-se de forma superior ante os estraçalhados europeus. Na volta, embora criticada pela oposição por ser a cara da política populista do marido—que amainava porem nunca resolvia os problemas sociais, principalmente trabalhistas—tornou-se de fato uma heroína popular, líder do movimento que afinal deu as mulheres argentinas o direito de votar.

Ironicamente, embora tenha feito feérica campanha pela reeleição do marido em 1951 —e sua própria candidatura provavelmente vitoriosa a vice-presidência gorada por pressões militares—Evita não compareceu as urnas. Já doente, ela estava no hospital e a urna foi ate ela. Um mês e meio antes de morrer, chegou a comparecer a posse do marido reeleito. Foi sua ultima aparição publica, no dia 4 de junho de 1952. Antes disso, porém, todo o esforço de Perón foi transformar Evita de mito em santa. Ela não parou de ser homenageada, o Congresso aprovou lei qualificando-a oficialmente de "chefe espiritual da nação" e uma província ganhou o nome de Eva Perón.

Tudo isso preparou a Argentina para o inevitável, a morte de Evita, já "santa". O funeral durou semanas e o enterro foi, quase literalmente, faraônico. Seu corpo foi embalsamado e guardado na sede da central sindical de apoio a Perón, a CGT, enquanto se construía um nababesco mausoléu para guardá-lo definitivamente. De lá, quando o vínico Perón foi finalmente derrubado do poder por um golpe, em 1955, o corpo sumiu, seqüestrado por oficiais do novo governo militar.

A saga do corpo (descrita no livro "Santa Evita", de Tomas Eloy Martinez) durou cerca de duas décadas de mistério e peregrinações, até a volta de Perón ao poder, em 1973, já escorado numa espécie de Evita II, sua nova mulher, Isabelita. (A presença de Evita ficou tão marcada no imaginário argentino que uma presença feminina forte era quase uma imposição histórica). Com a volta de Perón ao poder, finalmente o corpo de Evita pode ser enterrado em solo argentino.

A polêmica em torno do corpo morto apenas repetia a polemica provocada por Evita quando viva. As contradições de um pais que deixou de ser rico na metade do século XX, que passou de uma Europa exilada na América do Sul a mais um pais subdesenvolvido ou em desenvolvimento, pode ser facilmente simbolizada na figura de Evita. Mas sua trajetória extrapola isso: tanto que, ao lado de Fidel Castro e Che Guevara, e a única figura política da América Latina que, a despeito da ignorância que o resto do mundo tem da parte de ca do planeta, e cultivada por todo o globo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1952

Outro passo em direção ao Fim

A vida passou a valer bem menos no planeta Terra a partir do dia 1º de novembro de 1952. Nesta data, a detonação da primeira bomba de hidrogênio da História, pelos Estados Unidos, fez com que, ainda muito mais concretamente do que com a bomba atômica, a possibilidade de extermínio da Humanidade saísse do espaço restrito das histórias de ficção cientifica. Com a Guerra Fria estimulando a corrida armamentista, principalmente nos anos 50 e 60, o ser humano teve que dormir com o pesadelo de que algum dedo desavisado apertasse o botão do apocalipse.

Tanto temor tinha lá suas razoes. A bomba de hidrogênio, detonada no Atol de Eniwetok, nas Ilhas Marshall, Oceano Pacifico, teve uma explosão equivalente a 10 milhões de toneladas de TNT, ou seja, o artefato termonuclear era 500 vezes mais poderoso que a bomba atômica que destruiu Hiroshima. Seu processo, desenvolvido pela mesma equipe do Projeto Manhattan, que construiu as primeiras bombas atômicas, consistia na fusão de núcleos de átomos leves, como o hidrogênio.

Para atingir o imenso potencial explosivo de uma bomba de hidrogênio, era necessário usar como gatilho uma quantidade muito grande de energia, o que foi conseguido através da explosão de uma bomba atômica. Os 100 milhões de graus centígrados gerados em seu centro foram suficientes para varrer do mapa uma ilha inteira do atol e acabar com qualquer espécie de vida num raio de dezenas de quilômetros.

Tendo a frente três físicos de renome, o americano J.R. Oppenheimer, o húngaro Eduard Teller e o italiano Enrico Fermi, a equipe seguiu a risca e em pouquíssimo tempo a determinação do presidente americano Harry Truman, que tomara a decisão de fabricar a bomba termonuclear de hidrogênio no dia 1° de fevereiro de 1950. Com a explosão da primeira bomba atômica soviética, em 23 de setembro de 1949, a fabricação de armamentos nucleares deixava de ser exclusividade dos Estados Unidos—dai a necessidade de se pesquisar e descobrir explosivos ainda mais destrutivos, ainda mais letais.

Os soviéticos explodiram sua primeira bomba de hidrogênio apenas um ano depois. Os dois países, então, passariam a intensificar as experiências, com novas detonações em ilhas isoladas e desertos. Oppenheimer, que, paradoxalmente, se opunha publicamente a toda essa paranóia, foi pego pela campanha anticomunista do senador Joseph McCarthy e considerado subversivo. Com o desenvolvimento da bomba de neutrons e a ampliação do clube atômico para países como Inglaterra, França e China, a expressão "Dia do Juízo Final" saiu das profecias apocalípticas e passou a fazer parte da rotina das pessoas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1952

A soberana do Commonwealth

"Morreu o rei. Viva a rainha." Na madrugada de 6 de fevereiro de 1952, doente cardíaco e com um câncer de pulmão em estagio avançado, morria no Palácio de Sandringham, aos 56 anos, o rei George Vl da Inglaterra. No mesmo dia. sua filha mais velha e herdeira da coroa, Elizabeth, de 25 anos, que se encontrava em missão oficial no Quênia, voltou as pressas a Londres para ser proclamada rainha do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e de outros reinos e territórios, líder da Comunidade Britânica (Commonwealth) e defensora da Igreja Anglicana.

Elizabeth Alexandra Mary nasceu em 21 de abril de 1926, em Londres. Seu pai, segundo na sucessão do trono inglês, se tornou rei em 1936 depois que o irmão, Edward VIII, abdicou para se casar com Wallis Simpson, uma americana divorciada. Nessa ocasião, a pequena Lilibeth—como a família a chamava—se tornou a herdeira presuntiva de George Vl. Sua educação, como costuma acontecer com os membros da família real inglesa, foi feita em palácio, com preceptores. Elizabeth se dedicou com mais afinco ao estudo de história, línguas e musica. A família não queria, mas durante a Segunda Guerra Mundial ela fez questão de ajudar e durante algum tempo dirigiu e consertou caminhões de transporte dos serviços auxiliares.

Elizabeth casou-se em 20 de novembro de 1947 com Philip Mountbatten, um primo distante que pertencia a nobreza grega, nomeado duque de Edimburgo e promovido a almirante da Marinha britânica no dia do casamento, depois de renunciar a qualquer pretensão ao titulo real da Grécia. Em 1952, a nova rainha herdava o que já não era o poderoso Império Britânico—uma das jóias mais preciosas da coroa, a Índia, fora perdida no ano de seu casamento. Os tempos eram outros, e as relações também. As antigas colônias aceitavam se unir a metrópole por laços de amizade e cooperação, além da conveniência econômica.

Um dos grandes acontecimentos do mundo em 1953 foi a coroação de Elizabeth II na Abadia de Westminster, no dia 2 de junho. Foi a primeira a ser transmitida pela televisão, e toda Inglaterra pode assistir a soberana receber, junto com seus direitos e obrigações, a coroa de vários quilos, quatro rubis, 11 esmeraldas, 16 safiras, 273 pérolas e 2.783 diamantes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1952

O primeiro negro a retomar a África

Kwame Nkrumah praticamente saiu da prisão para o palácio de governo na colônia inglesa da Costa do Ouro (atual Gana). A partir de 21 de março de 1952, ele tornou-se o primeiro africano a ocupar a função de primeiro ministro ao sul do Saara. A partir de então, seu feito serviu de espelho para a luta pela independência de outras nações no continente.

Quando seu partido, o Partido Popular da Convenção (PPC), ganhou as primeiras eleições gerais da Costa do Ouro, ainda em 1951, habilitando-o a ocupar o cargo de primeiro-ministro, Nkrumah estava cumprindo pena de um ano de trabalhos forcados por subversão contra o Governo britânico. Solto, os pragmáticos colonizadores o chamaram para conversar. No ano seguinte, ele assumiu o poder. Contudo, sob o nome de Gana, a Costa do Ouro só se tornou oficialmente independente da Inglaterra quase cinco anos depois, a 6 de marco de 1957. "Gana" era o nome de um estado muçulmano que existiu no Sudão—ou seja, do outro lado da África—na Idade Media. Com a adoção desse nome, Nkrumah pretendia estimular o povo a repetir um passado glorioso e orgulhosamente negro.

Uma vez no poder, Nkrumah decretou uma serie de medidas de caráter autoritário, como a fundição dos partidos de oposição e a prisão sumaria dos "inimigos do Estado". Paradoxalmente, a popularidade do Governo cresceu, graças a implantação de uma nova política social e a melhoria da infra-estrutura do pais. Mas os principais setores da economia continuavam em mãos estrangeiras e o déficit da balança comercial chegou a então intoleráveis US$ 125 milhões. Em busca de apoio, o homem forte de Gana estreitou os laços com os países comunistas. Em 1962, começou a sofrer atentados. A crise econômica se acentuou, comprometendo inclusive o abastecimento de comida em Gana. Durante uma viagem a China, em 1966, o Exercito o derrubou, libertando mais de mil presos políticos.

Exilado, Nkrumah firmou-se como um dos mais importantes articuladores da independência dos países africanos, escrevendo, entre outros, "Manual da guerra revolucionaria" e "Luta de classe na África". Até a morte, por câncer, em Bucareste, na Romênia, em 1972, manteve estreitos laços com os movimentos negros, inclusive nos EUA e no Caribe.

Sua ligação com estas regiões vinha desde os tempos de estudante. Nascido na Costa do Ouro, filho de um ourives, Nkrumah foi educado em escolas católicas e quase se tornou padre. Em 1935, aos 26 anos, matriculou-se na Lincoln University, na Pensilvânia, graduando-se em 1939. Neste período, aprofundou o estudo de Marx, de Lenin e do ativista jamaicano Marcus Garvey, que pregava a união dos negros e a criação de uma nação para seu povo na África. Em 1945, partiu para a Inglaterra, onde ingressou na London School of Economics and Political Science. Auto-intitulado "socialista-marxista e cristão não-sectário", fundou o PPC em 1947. Dois anos depois, lançou uma bem-sucedida campanha de não-violência e não cooperação, a Ação Positiva.

 

 

 

 

 

 

 

 

1952

O missionário da paz em Lambaréné

Aos 38 anos, Albert Schweitzer surpreendeu a família, os amigos e a comunidade acadêmica da Europa. Doutor em filosofia, teologia, medicina e musica, com diversos trabalhos publicados e considerado um dos melhores interpretes ao órgão das obras de Johann Sebastian Bach, o professor alemão deixou para trás uma então otimista Europa, em 1913, e seguiu para a vila de Lambaréné, na África Equatorial Francesa (hoje Gabão).

La iria construir um hospital para a população, tão necessitada como em qualquer outra colônia européia. Trinta e nove anos depois de sua partida, em 1952, Schweitzer receberia o prêmio Nobel da Paz, não apenas pelo imenso trabalho assistencial que desenvolveu, mas também por seus elogiados estudos e concorridas conferencias alertando sobre o perigo das armas nucleares.

Com o dinheiro do prêmio, Schweitzer construiu uma colônia para leprosos perto de seu hospital. A agitada vida desse filho de pastor protestante, nascido na região da Alsácia Superior, tem uma relação direta com a musica e o cristianismo. Após dar o primeiro concerto de órgão, aos 8 anos, Schweitzer dedicou-se mais ainda ao estudo, ate se tornar um dos virtuosos neste instrumento. A musica de J.S. Bach, sua principal referencia, seria tocada por ele em concertos no mundo todo, a maioria com renda revertida para o hospital de Lambaréné. Sobre o mesmo compositor, ele ainda publicou uma biografia considerada definitiva em 1905, quando contava 30 anos.

Com a religião, sua relação seria bem mais conturbado, principalmente depois do inicio do trabalho nas selvas africanas. Para ele, o maior problema era a forma com que o Evangelho era pregado pela Igreja: "Os nativos tem ânsia de religião, não de uma religião formal, mas da religião do amor." Na virada do século, quando estava se doutorando em teologia, Schweitzer estudara profundamente a vida de Jesus. Em 1906, publicaria o influente "A procura pelo Jesus histórico". As frases e reflexões de Jesus sobre a solidariedade e o amor ao próximo fariam parte dos trabalhos do alemão, mas sem vínculos com dogmatismos ou preceitos religiosos.

O Nobel conquistado pelo médico também e um reconhecimento a qualidade e diversidade de seus mais de 30 livros, que incluem, além dos já citados, "A concepção do mundo dos pensadores indianos" e "Discurso sobre Goethe". Schweitzer, contudo, também era criticado pelo tratamento paternalista que dava aos nativos. Após a sua morte, em 1965, na sua amada vila de Lambaréné, seu maior legado seria o exemplo de seu trabalho missionário e a crença de que "um dia a Humanidade vai perceber que a destruição de vidas e incompatível com a Ética".

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1952

Cage instala o silêncio na música

O pianista David Tudor entrava no palco, sob aplausos do publico. Sentava-se na banqueta e levantava o tampo do instrumento. Permanecia, sentado, quieto, silencioso, sem tocar sequer uma tecla, durante longos quatro minutos e trinta e três segundos. Atingida essa marca, então, Tudor fechava o tampo. Estava concluída "4'33"", peca do compositor americano John Cage que consistia, na verdade, do ruído do desconforto, tosses, pigarros, da platéia durante tal período de tempo. O ano da estreia era 1952 e os Estados Unidos se dividiam entre aqueles que o consideravam seu maior compositor no século, aqueles que nem mesmo o consideravam um compositor e outros, a esmagadora maioria, que não tinham a menor idéia de quem se tratava.

Cage postulava que a musica era um "recipiente vazio" e introduziu o acaso na criação, consultando o livro chinês de adivinhações, "I Ching" para determinar a estrutura de suas composições. Em 1930, aos 18 anos, o americano John Milton Cage Jr. viajara para a Europa, onde estudou com Erno Goldfinger e John Kirkpatrick, travando ainda contato com o dadaismo, via Marcel Duchamp. De volta aos Estados Unidos e interessado pelo sistema dodecafonico, passou a receber orientação do compositor Arnold Schoenberg. O mestre austríaco não aceitava pagamento, mas exigia do pupilo dedicação integral a música ate o fim de seus dias. Então, Cage concebeu "Water gong" em 1937, inspirado em Edgar Varése. O gongo era submerso numa piscina para um bale aquático da Universidade da Califórnia, Los Angeles (Ucla).

Outra de suas invenções—seu pai também era inventor—foi "o piano preparado": pregos, parafusos e borrachas eram postos entre as cordas do instrumento, para extrair novos timbres e ressonâncias. No final da década de 30, ele assinou a primeira musica eletroacústica, "Paisagem imaginaria n.º 1", para dois gravadores, pianos e pratos. Fascinado pela percussão, Cage passou a trabalhar com dança. Em 1942, mudou-se para Nova York, onde compôs para o coreógrafo Merce Cunningham "Credo in US" e "Paisagem imaginaria n.º 2 e 3". Depois de um casamento fracassado de três anos com Xenia Kashevaroff, o compositor tomou o bailarino como companheiro até 1992, quando morreu, aos 79 anos, vitimado por um enfarte.

Cage deixou cerca de 500 obras, entre composições, como "Paisagem imaginaria n.º 4" (executada por dois músicos que manipulavam 12 rádios, com notações precisas, mas de efeito aleatório) ou "Water music" (em que um pianista derramava água em potes e assoprava um apito dentro d’água), e livros, como "Writing through Finnegans Wake" (que explorava o texto de James Joyce) ou "Silence".

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1952

Nasce o moderno tranqüilizante

Até o inicio da década de 50, os sedativos mais conhecidos eram os barbitúricos, que apresentavam dois problemas: diminuíam a capacidade de percepção e provocavam sono. Em 1952 o medico americano Robert Wallace Wilkins isolou a reserpina, droga obtida de um arbusto denominado Rauwolfia serpentina, cuja raiz, na forma de pó, era usada ha séculos, na Índia, como calmante e hipotensor.

Sem reduzir a percepção, nem induzir ao sono, ela era capaz de atenuar as tensões dos pacientes, servindo como apoio ao tratamento psiquiátrico, embora não curasse os problemas dos doentes. A reserpina e outros remédios da mesma natureza passaram a ser denominados "tranqüilizantes".

Em 1953, o pó de reserpina, alcalóide que apresenta também propriedades de reduzir a pressão arterial, começou a ser utilizado nos países do Ocidente. Em meados da década, estava disponível para uso mais amplo. A procura pela Rauwolfia serpentina tornou-se tão grande a ponto de por a espécie em perigo e o Governo indiano impôs um embargo a sua comercialização.

Então, a reserpina foi quimicamente sintetizada e as experiências mostraram que esse mesmo alcalóide pode ser encontrado em quase 90 espécies do gênero Rauwolfia, nativo de regiões tropicais e subtropicais, como Ásia, África e Américas.

A reserpina revolucionou a maneira de lidar com os distúrbios mentais, pois ela e os outros tranqüilizantes demonstraram uma capacidade de moderar a ansiedade com um mínimo de outros efeitos sobre o sistema nervoso. Contudo, em altas doses, ela poderia causar depressão, razão que restringiu, na atualidade, seu uso no tratamento psiquiátrico. No tratamento da hipertensão, porem, basta administra-la em pequenas quantidades para os efeitos se fazerem sentir.

Progressivamente, a reserpina foi substituída, nos distúrbios do comportamento, por outras drogas. No entanto, havia deflagrado uma importantíssima mudança nos métodos de tratamento dos distúrbios mentais. Entre 1956 e 1969, o número de pacientes internados em instituições psiquiátricas americanas havia caído 19%, enquanto a população total crescera 20%. Resultados semelhantes foram obtidos em outros países.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1952

A apoteose do cinema cantado

O musical "Cantando na chuva" ("Singin' in the rain"), de Gene Kelly e Stanley Donen, e hoje considerado um marco do cinema. A cena em que Kelly canta "What a glorious feeling, I'm happy again!", debaixo de um aguaceiro, faz parte de qualquer antologia cinematográfica e do próprio imaginário do século.

No entanto, na época de seu lançamento, em 1952, o filme produzido por Arthur Freed foi ofuscado por "Sinfonia em Paris". Com sete Oscars, o preferido da critica e do público, produzido no ano anterior pelo mesmo Freed, expulsou de cartaz "Cantando na chuva" (que levou um único Oscar, de atriz coadjuvante para Jean Hagen), logo após a premiação.

Prestigiado produtor do estúdio Metro Goldwyn Mayer, Freed foi pianista dos Irmãos Marx e compôs, sempre em parceria com Nacio Herb Brown, canções de sucesso para musicais. "Singin' in the rain", originalmente feita para o espetáculo "Hollywood Musical Box Revue", era uma delas. Quando o projeto do filme começou a ser tocado, ainda em 1950 o produtor convocou os roteiristas Betty Comclen e Adolph Green para escrever aquele que seria seu 35º musical. e que deveria incluir uma seleção de velhas canções de Freed e Brown Depois de muitas pesquisas, a dupla decidiu fazer uma sátira baseada no ator John Gilbert, par romântico de Greta Garbo cuja voz inadequada o fez perder o posto de gala com o advento do cinema falado. Surgiu dai a personagem Lina Lamont (Hagen), atriz de sucesso e voz esganiçada, que cai em desgraça com o fim do cinema mudo.

A partir de Lina, criou-se a dupla de atores de voudeville que faz sucesso com o cinema falado, Don Lockwood (Gene Kelly) e Cosmo Brown (Donald O'Connor). Debbie Reynolds e Kathy Selden, atriz que depois de ser obrigada a emprestar a voz para Lina num filme chega ao estrelato graças aos dotes de cantora. Escolhido para a direção, Kelly, então atuando em "Sinfonia em Paris", não poderia assumir o compromisso de imediato e indicou o jovem coreógrafo Stanley Donen para a função. Freed aceitou o a contragosto, com a condição de que Kelly supervisionasse os trabalhos. O primeiro nome para encarnar Cosmo foi o de Oscar Levant. Mas por não ser dançarino, Levant foi preterido em favor de O'Connor, opção apoiada por Kelly e pelos roteiristas.

"Cantando na chuva" tem 103 minutos de duração, 60 deles recheados por deliciosos números musicais, na sua maioria com as canções de Freed e Brown: "Make'em laugh" (cuja tomada foi repetida dez vezes num único dia por O'Connor); "Fit as a fiddle"; "All I do is dream of you". Citado e recitado desde então, o clássico musical e ao mesmo tempo sátira, homenagem a Hollywood e exercício de metalinguagem, revelando truques e técnicas.

"Cantando na chuva" ainda tem o mérito de ter tornado famosas as monumentais pernas de Cyd Charisse, que estourou depois de seis anos como contratada da Metro. Incluída na ultima hora no numero final, "Broadway melody", Charisse, de 31 anos e sólida formação de bailarina clássica, estrela uma das mais sensuais seqüências musicais da História, coreografada por Kelly.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1952

Tempo real no Velho Meio Oeste

O xerife Will Kane ocupa lugar de honra na longa lista de heróis solitários do cinema. Numa cidade amedrontada e ingrata, enfrenta quatro bandidos no dia de seu casamento, justamente quando estava prestes a se aposentar e levar uma vida tranqüila na fazenda. Poderiam estar ai os ingredientes básicos de mais um típico western, se não fosse outra a intenção do roteirista Carl Foreman. Convocado pelo Comitê de Atividades Antiamericanas por suspeita de "cooperação com atividades subversivas", isto e, comunistas, Foreman transformou "Matar ou morrer" numa metáfora da caca as bruxas do macarthismo e fez do xerife vivido por Gary Cooper seu alter ego, um homem abandonado pelos amigos e diante de uma difícil decisão: lutar ou ir embora.

No filme, o xerife decide enfrentar os vingativos bandidos antes de abandonar a cidade e jogar fora o distintivo. Na vida real, Foreman foi para a Inglaterra, onde trabalharia anonimamente em roteiros como o de "A ponte do rio Kwai", de David Lean. Dirigido em 1952 por Fred Zinnemann, "Matar ou morrer" ganhou três Oscars: canção, montagem e ator, o segundo de Gary Cooper. No filme, sua mulher e Grace Kelly, pacifica professora que compartilha da crise de consciência do marido.

A história—contada em tempo real, o que aumenta o suspense—começa as 10h40m de uma quente manha de domingo na cidade de Hadleyville, no Meio Oeste americano, quando o já quase ex-xerife Kane acaba de se casar e recebe a inconveniente noticia de que Frank Miller, um bandido que ele mandara para a cadeia, foi solto e esta voltando de trem, com três capangas, para um ajuste de contas. O trem vai chegar ao meio-dia, dai o titulo original do filme ("High noon", meio-dia em ponto). Em sua frustrada tentativa de conseguir apoio na cidade, Kane vê a hora fatídica se aproximar em relógios por todos os cantos.

Aos 50 anos, ainda não refeito de uma úlcera, o anticomunista Cooper expõe os conflitos de seu personagem numa fisionomia contraída, sombria... Um herói para lá de humano e cauteloso. Em muitos pontos semelhante ao Shane de "Os brutos também amam" (1953), outro solitário, porem auto suficiente. No final das contas, os dois matam seus inimigos e vão embora, deixando para trás uma serie de enigmas e admiradores.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1952

Uma locomotiva entre os voadores

Quem acendeu a pira olímpica no grandioso estádio de Helsinque, Finlândia, em 19 de julho de 1952, foi uma glória local, o ex-corredor Paavo Nurmi, um dos "finlandeses voadores" que dominaram as provas de fundo do atletismo entre 1912 e 1939. O destaque nestas Olimpíadas, no entanto, seria um atleta tcheco. Emil Zatopek, a "locomotiva humana", já brilhara em Londres, em 1948, e agora em Helsinque, aos 30 anos, iria bater os recordes dos 5.000 e 10.000 metros e da maratona.

A Guerra Fria fazia com que a União Soviética quisesse mostrar que o comunismo era ótimo para o esporte. Se os americanos eram os melhores no atletismo masculino, no feminino os russos mandavam assim como na ginastica para ambos os sexos. Os americanos continuaram levando a melhor, com 40 medalhas de ouro, 19 de prata e 17 de bronze, mas a URSS exibia forca num inédito segundo lugar: 22 de ouro, 30 de prata e 19 de bronze.

Dois momentos comoventes: a vitória do luxemburguês Josef Josy Barthel—que estava muito longe de ser o favorito—nos 1.500 metros rasos, derrotando o recordista Werner Lueg, da Alemanha, e dando a seu pais a única medalha de ouro em Olimpíadas. E o segundo lugar para a dinamarquesa Lis Hartel, de 26 anos numa prova de hipismo que premiava sua garra e abnegação. Três anos antes Lis, uma das melhores amazonas da Dinamarca, tivera poliomielite e ficara completamente paralítica. Com muito esforço recomeçou a andar a cavalo e logo depois já disputava e vencia provas. Ela ganhou prata em Helsinque, ainda paralítica do joelho para baixo—precisava de ajuda para montar e desmontar.

No futebol, o fantástico time húngaro liderado por Puskas arrasou todos os adversários antecipando a participação na Copa de 1954. E o Brasil? Não esteve mal. Medalha de bronze nos 1.500 metros nado livre com Tetsuo Okamoto, outro bronze no salto em altura para José Telles da Conceição e ouro no salto triplo— que seria repetido nas próximas Olimpíadas —para Adhemar Ferreira da Silva.

Fonte: O Globo - Texto integral